sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A depreciação da memória perdida e a segurança do medíocre: A PUC do nosso tempo.



           
"Numa universidade o que deve prevalecer é o aspecto educacional, mesmo quando a juventude conteste, como acontece em todo o mundo, enfrentando determinadas normas estabelecidas, ao educador compete atuar de forma pedagógica e parece que só desta forma realmente podemos contribuir para o crescimento e para afirmação de nossa juventude e não é pela repressão que vai se alcançar estes objetivos." (Nadir Kfouri)

            Ontem, quando voltava para casa, recebi uma mensagem no meu celular de uma amiga, perguntando a respeito da suspensão das atividades acadêmicas na PUC/SP nessa sexta-feira. No momento não tinha conhecimento do fato, mas supus que a interrupção das aulas tivesse sido decretada, em decorrência da perda (no dia 13 de setembro) da grande Professora e Reitora (entre os anos de 1976 e 1984), Nadir Kfouri. Seria bastante natural que a PUC/SP suspendesse suas atividades para cultivar um pouco a memória desta que foi responsável pelos atos mais significativos de toda a história da PUC/SP.
            Ao chegar em casa, fui verificar a informação, e qual não foi a surpresa ao constatar que o motivo da suspensão das atividades na PUC/SP era por razão diametralmente oposta.
            Estava sendo organizado para sexta-feira à noite na PUC/SP um festival de música que tinha como pauta a questão política da legalização das drogas. Diante disso, para evitar que tal festival se realizasse, o Reitor Dirceu de Mello decretou, não apenas a suspensão das atividades, como também proibiu a circulação de qualquer pessoa no campus Monte Alegre da PUC/SP. Vide ato do reitor nº 127/2011.
            Para comentar um pouco esse fato quero iniciar por algo mais digno e apropriado para o momento. Lembremo-nos da Reitora Nadir Kfouri que nos deixou órfãos essa semana.
            Dona Nadir, juntamente com Dom Paulo Evaristo Arns, são as figuras que representam o que a PUC/SP foi durante muitos anos. O lugar da inquietação, da resistência, da ousadia, da insubordinação. Essa reitora era o retrato da excelência acadêmica da PUC/SP, ao evidenciar que o espírito da liberdade é o único sustentáculo efetivo do conhecimento. Para Nadir Kfouri a liberdade de pensamento deve ser precedida pela liberdade de ação, sem a qual o exercício do pensar só pode ser ilusoriamente livre.
            Estamos falando da Reitora que enfrentou a ditadura civil-militar brasileira por diversas vezes. Um enfretamento que se estendia desde a contratação de professores expulsos das universidades públicas, até a luta direta contra o regime, depois da invasão pelas tropas do exército desse mesmo campus da PUC/SP hoje sitiado.
            Essa mulher, que foi a primeira mulher reitora de uma universidade católica no mundo, escolhida pelo voto direto, fundou juntamente com Dom Paulo a excelência acadêmica puquiana ao transformar a universidade na “Cidadela da Resistência”. Foi na ousadia que a PUC/SP se agigantou e é a sua atual subserviência e domesticação que a encaminha para a mediocridade.
            Pois bem, o fechamento das portas da PUC/SP no dia de hoje não representam em nada a lembrança dessa extraordinária mulher que lamentavelmente nos deixou. Muito pelo contrário. Fechar a PUC hoje foi a evidência final de que essa memória, que construiu a universidade, se apagou.
            Retirar da PUC/SP a sua liberdade de contestar a ordem posta é a negação da “cidadela da resistência”. Haverá aqueles que virão ainda com os argumentos indigestos de que “hoje vivemos numa democracia”, “não estamos mais diante de um regime ditatorial”, “há meios e locais adequados para a contestação”. A estes, poderia apenas responder com uma provocação: Agamben explica. Mas, como credito que os únicos que entenderiam a provocação seriam aqueles que não precisariam ouvi-la, vou por outro caminho.

“A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do direito, que é uma luta constante (...). Essa luta faz parte do direito, porque o direito não é uma ‘coisa’ fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente.” [1]

            Acredito que o mínimo que se espera de alguém que se julgue defensor da democracia e que proteja o direito de expressão das opiniões contrárias as suas da mesma forma que defende seu próprio direito de proferir o que pensa. Não há democracia de mão única, nem de discurso único. Sobre “o lugar”, bem, a universidade é o loco de contestação por excelência, e mais, a democracia não tem lugar definido, ela não pode ser trancafiada em uma sala ou disciplinada por ritos e formalidades constritoras. As formas deveriam garantir o viver em liberdade, se não servem a isso, são as formas mesmas que devem ser abolidas. De toda maneira, já estou fugindo do assunto.
            O ponto é que a PUC/SP esqueceu-se desse passado que é o responsável por toda sua grandeza. Recusou-se a interromper as atividades para lembrar o legado de dona Nadir, mas não titubeou em sitiar a universidade para negar sua história. Nem é surpresa que na PUC/SP tenha passado em branco os 90 anos de Dom Paulo, que deveriam ter sido celebrados também essa semana.
            O que vemos hoje é a morte de uma PUC/SP que nem sei se ainda merece o título de universidade. A transformação de um loco de ousadia, numa escola de adestramento. Diante da mera possibilidade de acontecer na PUC/SP algo que ponha em cheque o status quo das coisas, o reitor manda sitiar a “cidadela da resistência” da mesma forma que fez Erasmo Dias em 1977.
“(...) ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico” [2]

            Os fundamentos são quase os mesmos dos milicos, os meios igualmente autoritários. Se no passado o legítimo eram os decretos e atos institucionais, a reitoria hoje os chama de “atos do reitor”. Se a PUC/SP é privada na hora de cobrar suas altíssimas mensalidades, é, em contra partida, pública no momento que o reitor acha conveniente aplicar regramentos estaduais de universidades estatais para proibir a cervejinha dos estudantes. Se a PUC/SP é democrática nas suas propagandas para angariar alunos, é profundamente autoritária para impedir a própria organização estudantil. Se a PUC/SP brada, em toda sua propaganda interna e externa, um “orgulho de ser PUC”, cabe a nós hoje perguntar qual é o motivo desse orgulho.            
           Fato é que hoje os portões da PUC/SP estão fechados. Fechados para garantir que o conhecimento e o espírito da ousadia não entrem na universidade, bem como para assegurar que a mediocridade continue confortavelmente instalada em seu interior. Esse é o “orgulho de ser PUC”, uma universidade que deprecia sua história para maquiar sua mediocridade.                        

Ivan de Sampaio


P.s: Essa Postagem foi publicada também no blog Chegou a Hora de Perder a Paciência.  
                                             


[1] LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo - SP: editora: Brasiliense, 2006. Coleção primeiros passos. P. 82.
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo – SP Editora Paz e Terra, 13ª edição 1992. P.81.   

5 comentários:

  1. Como um ex-filho da PUC, só posso dizer que estou abismado e revoltado!

    ResponderExcluir
  2. Pois é Raphael. E o pior é que essa festa não seria muito diferente das festinhas que já acontecem na PUC desde sempre. O reitor só conseguiu chamar muito mais atenção para essa questão com esse ato. A medida dele além de tudo foi politicamente negativa, para ele e para a PUC.

    ResponderExcluir
  3. Fora que é a segunda vez só esse ano que acontece algo assim. O mais engraçado é que, em junho, quando fecharam os portões da Comfil, o reitor "não sabia de nada, achou um absurdo fecharem a faculdade, a PUC é livre, não temos catracas!". Agora, a reação veio diretamente dele. Engraçado também é colocar "consumo de bebida alcoólica e entorpecentes" como motivo: afinal, ninguém nunca bebe ou fuma dentro da universidade... Além, é claro, dos vários motivos citados no seu texto.
    Revoltada é pouco.

    ResponderExcluir
  4. Pois é Anna... poderia até ter mencionado esses casos anteriores, realmente na hora em que eu estava escrevendo não me ocorreu. Mas certamente a atual administração da PUC tem sistematicamente atuado de forma a negar a história da instituição. Esse episódio recente foi apenas u exemplo de algo que já começa a integrar o cotidiano puquiano.

    ResponderExcluir
  5. O Mackenzie teve uma reitora mulher 1 década antes da Puc-sp. Eles também são cristãos, mas presbiterianos.

    Será que é aquela história dos protestantes serem mais adiantados que os católicos?

    Agora, de fato, a Puc-sp foi a primeira a ter eleição direta para reitor, e na primeira eleição já escolhemos a Nadir. Para ela exercer o 2°mandato, pois a 1° foi por indicação (tal como o caso da Esther no Mackenzie).

    Isso de eleição direta é realmente motivo de orgulho, já que nas universidades públicas ainda é eleição indireta: a comunidade escolhe os 3 mais (a "lista tríplice"), mas o mais votado não é necessariamente empossado pois quem escolhe pe o governador (Rodas da USP por exemplo não foi o mais votado dos 3).

    Nos anos recentes existe um espectro que ronda a Puc e tira todo o charme da marca histórica da eleição direta: na última eleição a Fundação São Paulo deixou claro que ela tem o poder de escolher quem ela quiser da lista tríplice que a comunidade escolher.

    Quando fui reclamar do retrocesso, alguns disseram que sempre foi assim, eles sempre tinham esse poder de decisão mas que até agora concordaram sempre em eleger o mais votado, "tradição" que mantiveram inclusive na última, deixando Dirceu tomar posse após ser o mais votado.

    Por mais que essa "tradição" respeite a comunidade, o fato de existir tira todo o charme mesmo. Sempre achei que nesse quesito éramos mais avançados que a USP, mas de repente nos iguala, sendo que a único detalhe que nos diferencia é que daqueles tempos da ditadura, os governantes têm a tradição de indicarem quem eles quiserem para reitor e na PUC-SP essa tradição só seria invertida. (Assisti o filme "O discurso do rei" e me lembrei do padre dizendo que o a sucessão do trono da Inglaterra tem de ter o aval da Igreja. achei graça ao pensar "até parece que não é a família real que escolhe", só não ri pois o padre falou com muita seriedade!)

    Enfim, não sei se esse poder dos padres sempre existiu, ou se é recente... só consultando os regulamentos da PUC mesmo. Mas se precisa de aval para posse, na minha concepção não chamaria de "eleição direta". Só sei que na elição da Maura, só tinha 3 candidatos mesmo, então a lista tríplice já estava formada e nem precisaríamos votar se fosse para a igreja escolher quem ela quiser... No dia em que a igreja não concordar em empossar o mais votado, será o momento em que perceberemos o que é voto mesmo e o que é apenas pesquisa de opinião tipo Vox Populi. Espero que nunca chegue esse dia.

    ResponderExcluir