No mês passado fiz uma postagem sobre o projeto de lei
municipal 294/2005 que instituía em São Paulo o “Dia do Orgulho Heterossexual”.
Felizmente o prefeito Gilberto Kassab, em um de seus
raríssimos momentos de lucidez, (creio até que tenha sido o único enquanto
prefeito) decidiu vetar o projeto. Realmente foi uma surpresa esse veto vindo
de um prefeito famoso pela truculência. Lembremos penas de um episódio:
De toda forma, publico hoje o texto
do veto aqui, tendo em vista que dificilmente o prefeito Kassab nos dará, em
vida, outro motivo para elogio.
O Marcelo Semer já comentou o veto em seu blog, veja aqui. De forma
que me limitarei a colocar aqui as razões do veto para aqueles que se
interessarem em ler. Não acrescento mais nada também porque creio que estaria
apenas repetindo o que eu mesmo já publiquei na postagem O Orgulho que Serve ao Preconceito, bem como o que outros
companheiros da blogosfera já falaram, como na postagem Orgulho Heterossexual do blog Janela da Parede Azul mantido por Oscar Santos.
Dessa forma, segue as razões do veto
redigidas pela assessoria jurídica do prefeito.
Ivan de Sampaio
RAZÕES DE VETO
Projeto de Lei nº 294/05
Ofício ATL nº 105, de 30 de agosto de 2011
Senhor Presidente,
Por meio do ofício acima referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 294/05, de autoria do Vereador Carlos Apolinário, aprovado na sessão de 2 de agosto do corrente ano, que objetiva dispor sobre a instituição do “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”. De acordo com o teor da propositura, o “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”, a ser anualmente comemorado no 3º domingo do mês de dezembro, integrará o “Calendário Oficial de Datas e Eventos do Município de São Paulo”, devendo o Poder Executivo envidar esforços no sentido de divulgar a data com o objetivo de “conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes” (artigos 1º e 2º).
Contudo, considerando que, à vista das conclusões alcançadas no parecer expendido pela Procuradoria Geral do Município, acolhida pela Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e na manifestação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, conforme restará adiante explicitado, o conteúdo da propositura é materialmente inconstitucional e ilegal, bem como contraria o interesse público, vejo-me na contingência de, com fundamento no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município, vetar totalmente o texto assim aprovado.
Referido
projeto de lei, cujo artigo 1º parece tão somente instituir e acrescentar mais
uma data comemorativa ao Calendário de Eventos da Cidade de São Paulo, o que
seria plenamente legítimo, na realidade não se reveste da simplicidade que
aparenta ostentar, circunstância que, por certo, explica a sua enorme
repercussão, majoritariamente negativa, no Brasil e até mesmo na imprensa
internacional, como é o caso, só para exemplificar, das revistas “Forbes” e
“Newsday”, que destacaram a inusitada criação do “Straight Pride Day” em seus
respectivos sites, consoante noticiado no Portal da “Folha.com” em 2 de agosto
de 2011.
Em
princípio, poder-se-ia argumentar que, se a Cidade de São Paulo comemora, como
tantas outras no Brasil e no mundo, o “Dia do Orgulho Gay” (Homossexual),
então, sob o pálio de uma isonomia meramente formal, seria legítimo que ela
igualmente comemorasse o “Dia do Orgulho Heterossexual”, pois dessa forma todas
as preferências, orientações ou tendências sexuais estariam contempladas pelo
legislador no aludido Calendário, confirmando a vocação democrática e
pluralista desta terra paulistana.
Essa não é, todavia, a isonomia de tratamento que o comando contido no artigo 2º do indigitado texto pareceu querer por evidência, na medida em que ali está prescrito que, vale a pena repetir, o Poder Executivo Municipal “envidará esforços no sentido de divulgar a data instituída por esta lei, objetivando conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes”. Como se vê, o dispositivo expressamente patenteia que o “Dia do Orgulho Heterossexual”, cuja comemoração anual dar-se-á na semana do natal, estará associado ao resguardo da moral e dos bons costumes. Logo, não é necessário fazer grande esforço interpretativo para ler, nas entrelinhas do pretendido preceito, que apenas e tão só a heterossexualidade deve ser associada à moral e aos bons costumes, indicando, ao revés, que a homossexualidade seria avessa a essa moral e a esses bons costumes. Aliás, o texto da “justificativa” que acompanhou o projeto de lei por ocasião de sua apresentação descreve, em vários trechos, condutas atribuídas aos homossexuais, todas impregnadas de sentimentos de intolerância com conotação homofóbica.
Essa não é, todavia, a isonomia de tratamento que o comando contido no artigo 2º do indigitado texto pareceu querer por evidência, na medida em que ali está prescrito que, vale a pena repetir, o Poder Executivo Municipal “envidará esforços no sentido de divulgar a data instituída por esta lei, objetivando conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes”. Como se vê, o dispositivo expressamente patenteia que o “Dia do Orgulho Heterossexual”, cuja comemoração anual dar-se-á na semana do natal, estará associado ao resguardo da moral e dos bons costumes. Logo, não é necessário fazer grande esforço interpretativo para ler, nas entrelinhas do pretendido preceito, que apenas e tão só a heterossexualidade deve ser associada à moral e aos bons costumes, indicando, ao revés, que a homossexualidade seria avessa a essa moral e a esses bons costumes. Aliás, o texto da “justificativa” que acompanhou o projeto de lei por ocasião de sua apresentação descreve, em vários trechos, condutas atribuídas aos homossexuais, todas impregnadas de sentimentos de intolerância com conotação homofóbica.
Consequentemente,
sob essa perspectiva, caso o Município de São Paulo, por qualquer de seus
órgãos, viesse a dar cumprimento ao mencionado artigo 2º, daí resultaria a
inequívoca mensagem à população em geral no sentido de que a homossexualidade
seria “um modo de ser” supostamente contrário à moral e aos bons costumes, com
isso violando princípios basilares e objetivos fundamentais constitucionalmente
agasalhados, dentre eles o da cidadania, o da dignidade da pessoa humana, o da
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o da redução das
desigualdades sociais, o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e “quaisquer outras formas de discriminação”, e
o da prevalência dos direitos humanos (Constituição da República Federativa do
Brasil, artigo 1º, incisos II e III, artigo 3º, incisos I, III e IV, e artigo
4º, inciso II).
Mas
não é só. A essa desconformidade da proposta legislativa com a Carta Magna
Brasileira, por si só suficiente para impedir a sua conversão em lei, soma-se o
fato de que ela também não está de acordo com o interesse público. Com efeito,
sob a aparência de promover o “orgulho da heterossexualidade” - e aqui se deve
observar que não faz sentido algum “ter” ou “comemorar” o orgulho de pertencer
a uma maioria que não sofre qualquer tipo de discriminação - a carta de lei
vinda à sanção mal disfarça o preconceito contra a homossexualidade, associada,
por inferência (artigo 2º) e consoante se colhe de sua “justificativa”, à falta
de moral e de bons costumes. Assim, ao invés de promover o entendimento das
diferenças e, pois, a paz social, função maior da Política, o projeto de lei
milita a serviço do confronto e do preconceito, razão primeira da sua
contrariedade ao interesse público.
Acerca
do tema, lapidar e percuciente é a abordagem realizada pelo jurista MARCOS
ZILLI, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo - USP e Coordenador da “Coleção Fórum de Direitos
Humanos”, no artigo intitulado “A criação do Dia do Orgulho Hétero Incentiva a
homofobia? - Tolerar, verbo transitivo”, publicado na seção “Tendências/Debates”
do Jornal Folha de S.Paulo, edição do dia 13 de agosto de 2011, do qual, por
pertinente e oportuno, ora se transcreve o seguinte trecho:
“A
expressão “orgulho” (“pride”), estreitamente associada à luta pela conquista da
cidadania plena da chamada comunidade LGBT, representa o contraponto do
sentimento de “vergonha”, que sempre pautou o tratamento opressivo dado à
orientação e à identidade sexual diversa do padrão socialmente aceito. Afinal,
tais comportamentos evocavam a noção de defeito, de modo que deveriam
permanecer ocultos diante do vexame familiar e social que provocavam. A
dignidade humana, como se sabe, é patrimônio que não está restrito a grupos
específicos. No entanto, são justamente as minorias que mais se ressentem do
exercício pleno de seus direitos, já que as sociedades tendem a ditar o seu
ritmo à luz de uma maioria. Fixa-se, então, um padrão comum, e a ele se agrega
o qualificativo da normalidade. A situação se agrava quando a minoria não é
percebida como uma projeção natural da diversidade e da pluralidade humana, mas
como um desvio a ser menosprezado, esquecido ou corrigido. É nesse momento que
se abrem as portas para o exercício diário da intolerância e da violência. A
destinação de datas relacionadas com as minorias é apenas uma das ferramentas
disponíveis no vasto terreno da luta pela efetividade dos direitos humanos. Em
realidade, elas possuem valor meramente simbólico, já que o objetivo é o de
chamar a atenção do grupo social em favor de quem é, diariamente, esquecido no
exercício de seus direitos. Busca-se promover a conscientização de que a
dignidade humana não é monopólio restrito à maioria. Vem daí a consagração dos
dias “da Mulher”, “da “Consciência Negra” e “do Índio”. Nessa perspectiva, a
reserva de uma data especial para a celebração do orgulho dos heterossexuais se
mostra desnecessária, uma vez que não há discriminação por tal condição. Não
são associados à doença ou ao pecado, tampouco são alvo de perseguições no
trabalho, nas escolas ou em outros ambientes sociais. A união heterossexual,
por sua vez, é totalmente amparada pelo Estado e pelo Direito. Além disso, a
iniciativa legislativa propicia uma leitura perigosa, capaz de desvirtuar a
própria dinâmica dos direitos humanos. Com efeito, ao acentuar o vínculo já consolidado
entre “orgulho” e o “padrão socialmente aceito”, a lei cria dificuldades para
que se elimine o estigma da “vergonha” que persegue o movimento oposto. Afinal,
vergonha não emerge do que se mostra normal, mas, sim, do que se qualifica como
anormal. Em verdade, a energia criativa do legislador deveria ser canalizada em
prol de políticas públicas eficientes para o processo de consolidação da
respeitabilidade integral dos direitos humanos. A questão é especialmente
urgente em uma cidade onde são recorrentes os atos de violência racial, étnica,
religiosa, de gênero e de orientação sexual. Experiências frutíferas poderiam
ser alcançadas nos bancos escolares públicos. Leis que se mostrassem
preocupadas com a formação de crianças desprovidas de quaisquer preconceitos já
seriam muito bem-vindas. Afinal, na base da educação dos direitos humanos
repousa o valor-fonte da tolerância. É chegada a hora de aceitarmos tudo o que
não se apresente como espelho.”
Por
derradeiro, impende ressaltar que as políticas públicas encampadas pelo
Município de São Paulo inserem-se no atual contexto nacional e internacional de
reconhecimento e garantia dos direitos das denominadas minorias ou grupos em
situação de vulnerabilidade social (mulheres, negros, nordestinos, crianças,
pessoas com deficiência física, comunidade LGBT, idosos, pessoas em situação de
rua e outros), em perfeita harmonia, aliás, com o disposto no artigo 2º,
“caput” e inciso VIII, da Lei Orgânica da nossa Cidade, segundo o qual a
organização do Município observará, dentre outros princípios e diretrizes, a
garantia de acesso, a todos, de modo justo e igual, sem distinção de origem,
raça, sexo, “orientação sexual”, cor, idade, condição econômica, religião “ou
qualquer outra discriminação”, aos bens, serviços e condições de vida
indispensáveis a uma existência digna. Por óbvio, para o alcance desse
desiderato, no caso dessas minorias, faz-se necessário lançar mão da figura da
“discriminação positiva”, calcada na noção aristotélica de isonomia, qual seja,
tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais.
Com
esse propósito, cabe destacar, pela pertinência com o assunto aqui enfocado, as
políticas públicas voltadas à específica proteção do segmento de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT, como a adoção, dentre outras,
das seguintes medidas: a) criação da Secretaria Municipal de Participação e
Parceria, cuja Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual - CADS tem por
atribuição atender as necessidades específicas de referido segmento, visando a
promoção da sua cidadania e o combate a todas as formas de discriminação e de
preconceito; b) instituição do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade
Sexual, órgão colegiado, de caráter consultivo, composto por membros da
sociedade civil e Poder Público Municipal, com competência para propor o
desenvolvimento de atividades que contribuam para a efetiva integração
cultural, econômica, social e política do segmento LGBT; c) edição do Decreto
nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010, dispondo sobre a inclusão e uso do nome
social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais relativos a
serviços públicos prestados no âmbito da Administração Direta e Indireta; e d)
envio, à Câmara Municipal, do Projeto de Lei nº 359/07, estabelecendo medidas
destinadas ao combate de toda e qualquer forma de discriminação por orientação
sexual no Município de São Paulo.
Por conseguinte, claro está que o projeto de lei em relevo, mormente em face do seu conteúdo discriminatório, efetivamente não se coaduna com as ações governamentais que vêm sendo implementadas no âmbito da Administração Pública do Município de São Paulo, direcionadas ao bem comum e à paz social.
Nessas condições, assentadas e explicitadas as razões de inconstitucionalidade, de ilegalidade e de contrariedade ao interesse público que me impedem de sancionar a iniciativa assim aprovada, devolvo o assunto ao reexame dessa Colenda Casa de Leis.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB, Prefeito
Por conseguinte, claro está que o projeto de lei em relevo, mormente em face do seu conteúdo discriminatório, efetivamente não se coaduna com as ações governamentais que vêm sendo implementadas no âmbito da Administração Pública do Município de São Paulo, direcionadas ao bem comum e à paz social.
Nessas condições, assentadas e explicitadas as razões de inconstitucionalidade, de ilegalidade e de contrariedade ao interesse público que me impedem de sancionar a iniciativa assim aprovada, devolvo o assunto ao reexame dessa Colenda Casa de Leis.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB, Prefeito
Kassab enfrentou um drama pessoal e político que nem a esquerda e nem a direita quiseram enxergar.
ResponderExcluirA esquerda não queria enxergar o drama da situação bastante absurda do Kassab ser um gay que estava sendo pressionado para aprovar um projeto homofóbico. Esse silêncio da esquerda é compreensível pois com o lado direitista de Kassab fica difícil de nos comover com esse drama.
A direita tampouco. A direita, ao ignorar o "esquerdismo" da defesa dos gays, também ignorou a condição pessoal do Kassab, vendo-o apenas como instrumento (e aliado) contra a "ditadura gay".
Provavelmente o que se passou nos bastidores daria um filme!
Não sei Célinho... não gosto de especular sobre o Kassab ser ou não gay e sobre as implicações que esse fato poderia ou não ter na decisão tomada por ele.
ResponderExcluirTambém não acredito que possamos tentar usar essas especulações psicológicas para aferir de forma determinista uma decisão política.
De toda forma, a princípio o Kassab havia se manifestado favorável ao projeto de lei, afirmando ser "um projeto como outro qualquer". Depois de uma significativa manifestação contrária da sociedade civil saiu esse veto. Tendo a pensar que a avaliação foi mais guiada por uma análise de ônus político do que uma concepção pessoal do Kassab em decorrência de sua orientação sexual.
Creio que a decisão foi tomada segundo uma avaliação estritamente eleitoral. Afinal, a opinião pública foi, em larga medida, contra o projeto de lei e atacou duramente a câmara pela aprovação, jogando uma pressão gigantesca para o colo do prefeito. Neste caso, independentemente de convicções pessoais (que não cabe aqui discutí-las), Kassab vetou-o pensando na perda eleitoral que poderia sofrer. Vetar o projeto, contudo, não lhe traz um ganho. Ele só tinha a perder nessa história.
ResponderExcluirDe fato há motivos políticos, eleitorais, etc que encobrem perfeitamente o possível drama pessoal dele. Saliente-se que entendo perfeitamente as análises de vocês para essa decisão política. É perfeitamente possível esse drama pessoal do Kassab ser ignorado (tanto pela esquerda quanto pela direita). Mas... acho que o drama existiu sim, e ficará para a história como fato obscuro, a ser revelado talvez em livros de história do gênero "Sexo com reis".
ResponderExcluirIvan, te agradeço por reunir nossos ideais neste post muito interessante. Frente a tantas dificuldades em estabelecer a plena igualdade de direitos constitucionais LGBT, um gesto que, na verdade é o mínimo, não mais que obrigação de cidadão, é bem relevante! Vou publicar no Facebook. Abração!!!
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