Hoje, dia em que comemoramos nossa “independência”, vou falar sobre um tema bastante discutido. Quero refletir um pouco sobre idéia
de “Estado laico”.
Ultimamente essa expressão tem sido
evocada, fundamentalmente para se opor a invasão religiosa na política (em
especial no congresso nacional). Esse primeiro significado da expressão decorre
fundamentalmente da leitura do art. 19, inciso I[1]
da Constituição Federal. Nesse sentido tendo a defender veementemente as
iniciativas dos movimentos que defender um Estado laico. Os grupos religiosos que se projetam no âmbito eleitoral,
em sua maioria, se ligam a pautas extremamente conservadoras e por vezes
discriminatórias. As bancadas cristãs de forma geral tendem mesmo a buscar
impor práticas provenientes de sua moral religiosa por força de lei.
Isso é fruto da própria doutrina
Cristã, que, por mais que tenha seu ponto auto na idéia de identidade com o
outro[2],
se desenvolveu enquanto uma doutrina universal que tem sérias dificuldades em
lidar com a diferença. A pretensão expansionista cristã pode ser vista em inúmeras
de suas práticas, a título de exemplo podemos mencionar duas mais conhecidas: a
catequese e a formação e envio de missionários para os quatro cantos do mundo.
Toda a disputa por espaço dos cristãos é “justificada” com o objetivo
aparentemente inofensivo de “levar a palavra de Deus”.
A questão é que, a certeza sobre a verdade
desse grupo os leva a práticas impositivas; desde as fogueiras da inquisição
(quando os cristãos comandavam o Estado) até a formulação legislativa no
momento presente. Toda essa pretensão de verdade absoluta e universalização
religiosa leva-me a apoiar o movimento que defende um Estado Laico.
Esse debate é amplo e posso
mencionar aqui alguns momentos exemplificativos importantes, bem como indicar
alguns textos que discutem as questões. As discussões, em âmbito principalmente
judiciário, sobre a presença do crucifixo nas salas de audiência. Podemos mencionar também as iniciativas que
objetivam tornar obrigatória a leitura da bíblia[3].
As marchas realizadas em defesa da laicidade do Estado. Tudo isso aparece nessa disputa, e olha que nem estou
entrando nas questões mais debatidas que são os diretos GLBTT e a questão da descriminalização do aborto.
Apesar da amplitude do debate, ao
tratarmos o termo Estado Laico enquanto uma forma de “purificar’ o estado das
pretensões de imposição de uma crença ou uma moral proveniente de um credo,
penso ser necessário sairmos dessas discussões mais pontuais. O que gostaria de
discutir hoje é um ponto bastante diferente desse.
O que pretendo é analisar mais de
perto não as formas contemporâneas de tentar tirar a igreja do Estado, mas sim,
examinar como, em primeiro lugar, a religião (em especial o cristianismo, mas
também, em menor grau, o judaísmo) conseguiu se ligar tão profundamente ao ente
estatal. A impressão que tenho é que isso se deu não a partir do ente estatal
propriamente, mas por meio do desenvolvimento das práticas de governo[4].
Voltemos-nos então um pouco para
observar como foi possível que as práticas de governo fossem paulatinamente
conjuradas em uma esfera única estatal.
De acordo com o pensamento do filósofo
francês Michel Foucault, o objeto
propriamente de governo são pessoas e coisas, mais ainda, a relação das pessoas
e das coisas entre si. Nesse sentido, Focault nos aponta que a idéia de um
governo nesses moldes se distingue muito da matriz grega que é usualmente
referência em matéria de filosofia política. “No pensamento grego o objetivo do
governo seria a cidade, não os homens.” [5].
Dessa forma, ao governar a polis, os homens seriam governados apenas de maneira
indireta. Esse governo do qual falamos, que teria como objeto a conduta em si
dos homens, parece ter sua origem muito mais marcante no pensamento
judaico-cristão. Será na pastoral cristã que Foucault encontrará primeiro o
sentido de “governar” que desenvolvemos aqui. Falamos do “poder pastoral”.
De maneira sintética, podemos
caracterizar o “poder pastoral” como uma forma de poder que não se exerce sobre
um território definido, mas sim sobre um grupo, sobre uma multiplicidade de
indivíduos em movimento. Essa forma de poder é também individualizante, o
pastor não abandona nenhuma de suas ovelhas, e, mesmo que uma delas venha a se
desgarrar, ele não a deixará para traz. Além disso, a finalidade desse “poder
pastoral” é justamente a manutenção do grupo e sua segura condução ao seu
destino. “Como um pastor cuida do seu rebanho, quando esta no meio de suas
ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos
os lugares por onde se dispersam em um dia de nuvens e de escuridão” [6]
Claro que aqui há uma matriz
fortemente teológica, de concepção de um Deus (judaico-cristão) que não está
ligado a um território específico. É um Deus “móvel” que protege um povo
escolhido (hebreus) ou toda humanidade (universalismo cristão) onde quer que se
encontre. Além disso, é também um Deus que conduz, seja à terra prometida por
meio de seu pastor (Moises) seja à salvação por meio do sangue de seu único
filho (Cristo).
Pois bem, mas o aspecto a ser
destacado de tudo isso é precisamente o caráter de “condução” desse poder
pastoral, seja dos homens, das coisas ou das condutas. Se pensarmos no governo
das almas (regimen animarum) a
intervenção da pastoral se fortalecerá precisamente nas condutas, na tentativa
de impedir o pecado, de dirigir às condutas dentro dos padrões do bom e do
justo. De forma ampla, poderíamos falar em uma condução da vida, em uma gestão
da vida. O grande objetivo dessa condução será assim atingir um estado de
salvação para o rebanho inteiro e para cada indivíduo em particular.
Justamente por ser a salvação o
grande objetivo do pastoreio, a relação entre o pastor e o rebanho é uma
relação de obediência para com o pastor. Também é o pastor o conhecedor da lei
e dos desígnios divinos, o que reforça a necessidade de obediência, vez que o
discurso do pastor será necessariamente o discurso verdadeiro fruto da vontade
de Deus. A obediência cristã será assim total para com o pastor. Seguir o
pastor é simplesmente cumprir o desígnio de Deus.
Diante disso, a responsabilidade do
pastor será apontada como de dois tipos: distributiva e analítica. Distributiva
por que “o pastor deve assegurar a salvação de todos, mas tal função não pode
acarretar o descuido em relação a cada uma das ovelhas”. [7] A responsabilidade é também
analítica, pois o pastor deverá responder por todos os atos praticados por cada
um dos indivíduos sob sua guarda. Logo, a salvação do pastor é a salvação de
seu rebanho e assim como o “cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo”, o
pastor deve estar disposto a se sacrificar pela salvação do rebanho.
No fundo, o pastoreio é um cuidado,
cuidado quase paternal. Mas é também um cuidado que não tem como fim a
autonomia dos sujeitos, mas sua obediência. E o fim dessa obediência é a
própria sujeição, a mortificação da vontade do sujeito, pois o que conduz os
homens deve ser a vontade de Deus. “Liberdade é obedecer a Deus” [8].
Cabe assim ao pastor dirigir a própria consciência do rebanho.
Pois bem, mas tudo isso parece
operar no âmbito da religião. Como se dá então a passagem desse governo das
almas para a política propriamente?
Inicialmente a religião passa a se
aproximar mais da vida material e isso já projeta, de certa forma, essa lógica
da pastoral cristã para outros âmbitos da vida. Mas a racionalidade política
que Foucault aponta como a ponte da pastoral cristã para a política é a idéia
tomista de que “o rei governa”. A figura do monarca passa paulatinamente a ser
“divinizada” e o governo do rei deve então ser espelhado no governo da natureza
sobre vida, do pastor sobre o rebanho, do pai sobre a família, de Deus sobre os
homens.
Veja que assim Foucault consegue,
não só apontar a antecedência do governo em relação à instituição própria da
soberania, mas também permite a ele indicar que foram as próprias práticas de
governo que paulatinamente se “entificaram” na criação do Estado soberano.
O que acredito que podemos perceber
de tudo isso é que o pensamento religioso não está presente apenas nas disputas
políticas pontuais como as questões que indiquei no início dessa postagem. Creio
que a própria forma do exercício dos poderes de governo tem, em si, uma matriz
fortemente teológica. A própria idéia de que os homens precisam ser governados,
de que um líder é necessário pode ser vista como uma releitura e uma recriação
do mito do messias do salvador.
Penso assim que precisamos lutar por
uma laicidade muito mais ampla. Não basta tentar fazer com que o Estado seja laico,
é preciso que ele seja superado enquanto ente e enquanto prática para que
possamos tentar formular a política de forma minimamente livre da fé.
Feliz dia da Independência para
tod@s!
Ivan
de Sampaio
[1] Art. 19. É vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[2] “Amarás o teu próximo como a ti
mesmo” (Mateus 22,39)
[3] Particularmente tentar incluir
na ritualística legislativa a leitura da bíblia chega a ser engraçado.
Honestamente, acredito que se os cristãos realmente lessem a bíblia de forma
sistemática, dificilmente manteria sua fé. Pra mim, em particular, a bíblia foi
um dos livros que mais ajudou a hoje afirmar que sou ateu.
[4] Para falar disso usarei um pouco
minha monografia de conclusão do curso de direito da PUC/SP. Especificamente um
tópico chamado: “O poder que conduz os rebanhos” do Capítulo III.
[5] FONSECA, Marcio Alves. Michel
Foucault e o Direito. P. 219.
[6] BIBLIA, Ezequiel. Português.
Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo/SP. 1985. Cap. 34 Vers.
12.
[7] FONSECA, Marcio Alves. Michel
Foucault e o Direito. P. 220.
[8] Papa Bento XVI em sua homilia na
missa celebrada dia 15 de abril de 2010 na capela paulina no Vaticano.
Como distinguir política e fé?
ResponderExcluirUma política sem fé só é desenvolvida por um povo sem fé.
De certa forma sim. O ponto que quis destacar aqui é que essa pretensa laicidade dos Estados modernos só se sustenta com a separação feita entre forma e conteúdo no âmbito d política. O que quis destacar é que a forma do Estado não é neutra do ponto de vista da fé, el traz em si um conteúdo e uma concepção de governo oriunda das praticas religiosas cristãs. Dessa forma um meio de realmente se buscar laicidade deveria passar por combater essas formas em si, e não só apontar a interferência dos radicais religiosos em defesas de putas conservadoras.
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