quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Estado e o Rebanho


          


            Hoje, dia em que comemoramos nossa “independência”, vou falar sobre um tema bastante discutido. Quero refletir um pouco sobre idéia de “Estado laico”.

            Ultimamente essa expressão tem sido evocada, fundamentalmente para se opor a invasão religiosa na política (em especial no congresso nacional). Esse primeiro significado da expressão decorre fundamentalmente da leitura do art. 19, inciso I[1] da Constituição Federal. Nesse sentido tendo a defender veementemente as iniciativas dos movimentos que defender um Estado laico. Os grupos religiosos que se projetam no âmbito eleitoral, em sua maioria, se ligam a pautas extremamente conservadoras e por vezes discriminatórias. As bancadas cristãs de forma geral tendem mesmo a buscar impor práticas provenientes de sua moral religiosa por força de lei.

            Isso é fruto da própria doutrina Cristã, que, por mais que tenha seu ponto auto na idéia de identidade com o outro[2], se desenvolveu enquanto uma doutrina universal que tem sérias dificuldades em lidar com a diferença. A pretensão expansionista cristã pode ser vista em inúmeras de suas práticas, a título de exemplo podemos mencionar duas mais conhecidas: a catequese e a formação e envio de missionários para os quatro cantos do mundo. Toda a disputa por espaço dos cristãos é “justificada” com o objetivo aparentemente inofensivo de “levar a palavra de Deus”.
             A questão é que, a certeza sobre a verdade desse grupo os leva a práticas impositivas; desde as fogueiras da inquisição (quando os cristãos comandavam o Estado) até a formulação legislativa no momento presente. Toda essa pretensão de verdade absoluta e universalização religiosa leva-me a apoiar o movimento que defende um Estado Laico.
            Esse debate é amplo e posso mencionar aqui alguns momentos exemplificativos importantes, bem como indicar alguns textos que discutem as questões. As discussões, em âmbito principalmente judiciário, sobre a presença do crucifixo nas salas de audiência. Podemos mencionar também as iniciativas que objetivam tornar obrigatória a leitura da bíblia[3]. As marchas realizadas em defesa da laicidade do Estado. Tudo isso aparece nessa disputa, e olha que nem estou entrando nas questões mais debatidas que são os diretos GLBTT e a questão da descriminalização do aborto.
            Apesar da amplitude do debate, ao tratarmos o termo Estado Laico enquanto uma forma de “purificar’ o estado das pretensões de imposição de uma crença ou uma moral proveniente de um credo, penso ser necessário sairmos dessas discussões mais pontuais. O que gostaria de discutir hoje é um ponto bastante diferente desse.
            O que pretendo é analisar mais de perto não as formas contemporâneas de tentar tirar a igreja do Estado, mas sim, examinar como, em primeiro lugar, a religião (em especial o cristianismo, mas também, em menor grau, o judaísmo) conseguiu se ligar tão profundamente ao ente estatal. A impressão que tenho é que isso se deu não a partir do ente estatal propriamente, mas por meio do desenvolvimento das práticas de governo[4].
            Voltemos-nos então um pouco para observar como foi possível que as práticas de governo fossem paulatinamente conjuradas em uma esfera única estatal.   
            De acordo com o pensamento do filósofo francês Michel Foucault, o objeto propriamente de governo são pessoas e coisas, mais ainda, a relação das pessoas e das coisas entre si. Nesse sentido, Focault nos aponta que a idéia de um governo nesses moldes se distingue muito da matriz grega que é usualmente referência em matéria de filosofia política. “No pensamento grego o objetivo do governo seria a cidade, não os homens.” [5]. Dessa forma, ao governar a polis, os homens seriam governados apenas de maneira indireta. Esse governo do qual falamos, que teria como objeto a conduta em si dos homens, parece ter sua origem muito mais marcante no pensamento judaico-cristão. Será na pastoral cristã que Foucault encontrará primeiro o sentido de “governar” que desenvolvemos aqui. Falamos do “poder pastoral”.  
            De maneira sintética, podemos caracterizar o “poder pastoral” como uma forma de poder que não se exerce sobre um território definido, mas sim sobre um grupo, sobre uma multiplicidade de indivíduos em movimento. Essa forma de poder é também individualizante, o pastor não abandona nenhuma de suas ovelhas, e, mesmo que uma delas venha a se desgarrar, ele não a deixará para traz. Além disso, a finalidade desse “poder pastoral” é justamente a manutenção do grupo e sua segura condução ao seu destino. “Como um pastor cuida do seu rebanho, quando esta no meio de suas ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares por onde se dispersam em um dia de nuvens e de escuridão” [6]    
            Claro que aqui há uma matriz fortemente teológica, de concepção de um Deus (judaico-cristão) que não está ligado a um território específico. É um Deus “móvel” que protege um povo escolhido (hebreus) ou toda humanidade (universalismo cristão) onde quer que se encontre. Além disso, é também um Deus que conduz, seja à terra prometida por meio de seu pastor (Moises) seja à salvação por meio do sangue de seu único filho (Cristo).
            Pois bem, mas o aspecto a ser destacado de tudo isso é precisamente o caráter de “condução” desse poder pastoral, seja dos homens, das coisas ou das condutas. Se pensarmos no governo das almas (regimen animarum) a intervenção da pastoral se fortalecerá precisamente nas condutas, na tentativa de impedir o pecado, de dirigir às condutas dentro dos padrões do bom e do justo. De forma ampla, poderíamos falar em uma condução da vida, em uma gestão da vida. O grande objetivo dessa condução será assim atingir um estado de salvação para o rebanho inteiro e para cada indivíduo em particular.
            Justamente por ser a salvação o grande objetivo do pastoreio, a relação entre o pastor e o rebanho é uma relação de obediência para com o pastor. Também é o pastor o conhecedor da lei e dos desígnios divinos, o que reforça a necessidade de obediência, vez que o discurso do pastor será necessariamente o discurso verdadeiro fruto da vontade de Deus. A obediência cristã será assim total para com o pastor. Seguir o pastor é simplesmente cumprir o desígnio de Deus.
            Diante disso, a responsabilidade do pastor será apontada como de dois tipos: distributiva e analítica. Distributiva por que “o pastor deve assegurar a salvação de todos, mas tal função não pode acarretar o descuido em relação a cada uma das ovelhas”. [7] A responsabilidade é também analítica, pois o pastor deverá responder por todos os atos praticados por cada um dos indivíduos sob sua guarda. Logo, a salvação do pastor é a salvação de seu rebanho e assim como o “cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo”, o pastor deve estar disposto a se sacrificar pela salvação do rebanho.
            No fundo, o pastoreio é um cuidado, cuidado quase paternal. Mas é também um cuidado que não tem como fim a autonomia dos sujeitos, mas sua obediência. E o fim dessa obediência é a própria sujeição, a mortificação da vontade do sujeito, pois o que conduz os homens deve ser a vontade de Deus. “Liberdade é obedecer a Deus” [8]. Cabe assim ao pastor dirigir a própria consciência do rebanho.  
            Pois bem, mas tudo isso parece operar no âmbito da religião. Como se dá então a passagem desse governo das almas para a política propriamente?
            Inicialmente a religião passa a se aproximar mais da vida material e isso já projeta, de certa forma, essa lógica da pastoral cristã para outros âmbitos da vida. Mas a racionalidade política que Foucault aponta como a ponte da pastoral cristã para a política é a idéia tomista de que “o rei governa”. A figura do monarca passa paulatinamente a ser “divinizada” e o governo do rei deve então ser espelhado no governo da natureza sobre vida, do pastor sobre o rebanho, do pai sobre a família, de Deus sobre os homens.
            Veja que assim Foucault consegue, não só apontar a antecedência do governo em relação à instituição própria da soberania, mas também permite a ele indicar que foram as próprias práticas de governo que paulatinamente se “entificaram” na criação do Estado soberano.
            O que acredito que podemos perceber de tudo isso é que o pensamento religioso não está presente apenas nas disputas políticas pontuais como as questões que indiquei no início dessa postagem. Creio que a própria forma do exercício dos poderes de governo tem, em si, uma matriz fortemente teológica. A própria idéia de que os homens precisam ser governados, de que um líder é necessário pode ser vista como uma releitura e uma recriação do mito do messias do salvador.
            Penso assim que precisamos lutar por uma laicidade muito mais ampla. Não basta tentar fazer com que o Estado seja laico, é preciso que ele seja superado enquanto ente e enquanto prática para que possamos tentar formular a política de forma minimamente livre da fé.
            Feliz dia da Independência para tod@s!  

Ivan de Sampaio


[1] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[2] “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22,39)
[3] Particularmente tentar incluir na ritualística legislativa a leitura da bíblia chega a ser engraçado. Honestamente, acredito que se os cristãos realmente lessem a bíblia de forma sistemática, dificilmente manteria sua fé. Pra mim, em particular, a bíblia foi um dos livros que mais ajudou a hoje afirmar que sou ateu.         
[4] Para falar disso usarei um pouco minha monografia de conclusão do curso de direito da PUC/SP. Especificamente um tópico chamado: “O poder que conduz os rebanhos” do Capítulo III.      
[5] FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. P. 219.
[6] BIBLIA, Ezequiel. Português. Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo/SP. 1985. Cap. 34 Vers. 12.    
[7] FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. P. 220.
[8] Papa Bento XVI em sua homilia na missa celebrada dia 15 de abril de 2010 na capela paulina no Vaticano.  

2 comentários:

  1. Como distinguir política e fé?
    Uma política sem fé só é desenvolvida por um povo sem fé.

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  2. De certa forma sim. O ponto que quis destacar aqui é que essa pretensa laicidade dos Estados modernos só se sustenta com a separação feita entre forma e conteúdo no âmbito d política. O que quis destacar é que a forma do Estado não é neutra do ponto de vista da fé, el traz em si um conteúdo e uma concepção de governo oriunda das praticas religiosas cristãs. Dessa forma um meio de realmente se buscar laicidade deveria passar por combater essas formas em si, e não só apontar a interferência dos radicais religiosos em defesas de putas conservadoras.

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