Nessa postagem quero fazer algumas reflexões sobre
questões que enunciei quando comentei o dia do orgulho heterossexual na postagem
O Orgulho que Serve ao Preconceito. Estou
mais uma vez me aventurando nesse tema que tenho pouco acúmulo. Por essa razão,
o que pretendo aqui é apenas levantar algumas questões que possam contribuir
para a reflexão do tema.
Antes de entrar
propriamente no tema da produção de identidade de gênero em nosso tempo
gostaria de reconstruir, de forma bastante simplificada, uma tese existencialista.
O existencialismo de Sartre tem como
um de seus fundamentos a tese de que “a existência humana precede sua essência.”
Nesse ponto Sartre parte da leitura
que Heidegger faz da modernidade.
Para Heidegger, o início da
modernidade está no pensamento de Descartes.
Heidegger identifica no cogito cartesiano o passo primeiro do
movimento moderno do homem tornando-se senhor de si mesmo.
Ao observarmos no pensamento teológico a concepção de um
deus criador do mundo, vemos ali a gênese da concepção moderna de natureza
humana. Se uma entidade metafísica superior cria o homem, isso significa que,
antes do ato criador, existia, no gênio dessa entidade, a idéia, a essência do
homem. Nessa concepção, a essência do homem seria anterior a sua existência, e
mesmo independente dela. Logo, o homem já surgiria no mundo com uma quantidade
de predicados estabelecidos por Deus enquanto a essência do seu ser.
A partir de Descartes
Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade
e emerge o cogito cartesiano, a
verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e
não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da
representação, ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[1],
assegura a si mesmo enquanto aquele que é.
Em especial a partir do séc. XVIII, o ateísmo filosófico
suprime a idéia de Deus. Mas, a idéia de essência humana se mantém agora
denominada de natureza humana. O homem seria assim o mero representante
individual de um conceito universal pré-determinado. Ao mesmo tempo em que o
humanismo de Kant parece colocar o
homem no centro do seu sistema filosófico, a abordagem antropológica formula a
natureza universal desse homem de forma que o homem é um fim em si e esse fim
pode ser visto no âmbito dessa universalidade humana que é a natureza própria
do homem.
Depois desse percurso podemos afirmar que o existencialismo
colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto
central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência,
ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência,
sua própria natureza seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos
explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é
uma construção do próprio homem. Para Sartre
o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas
como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”
(J-P. Sartre). A isso Sartre chama
subjetividade.
Veja que essa subjetividade não se confunde com uma
individualidade. A subjetividade sartriana se dá numa relação de
responsabilidade do homem pelo mundo, é fruto de uma vontade. Essa vontade não
é uma escolha individual, mas uma capacidade criadora.
Feito esse longo preparo posso agora falar propriamente
da identidade de gênero. De forma geral, na nossa cultura o que se busca fazer
é ligar a identidade de gênero a um sexo biológico. Ou seja, se atribui ao
homem uma “natureza” masculina e à mulher uma “natureza” feminina. O ponto que
quero destacar é que a partir da leitura existencialista que mencionei, devemos
ver a existência como anterior a essência. Ou seja, não devemos conceber uma
natureza a priori que pode ser identificada
com um sexo específico.
Se pensarmos no âmbito próprio da sexualidade isso fica
um pouco mais evidente. Essa divisão estabelecida entre uma natureza feminina e
uma masculina repercute em determinada forma do uso dos prazeres que se julga “natural”
a cada corpo. Somando-se a isso a formulação de que, igualmente por natureza, o
sexo seria mera função reprodutora, vemos a constituição aqui de uma essência,
de uma natureza a posterior. Quer dizer, os corpos humanos têm a capacidade de
obtenção de prazer de inúmeras maneiras, mas a nossa cultura formulou um núcleo
binário que divide o uso do corpo e dos prazeres entre homens e mulheres. Sendo
assim, vemos que o que se chama de natural, ou de essência para os usos dos
prazeres é na realidade uma criação humana de subjetividade.
Dessa forma as identidades de gênero são formas de
subjetividade criadas pelo homem e atribuídas enquanto essências, enquanto
natureza de cada sexo. O que quero apontar é que nada mais artificial do que
isso que chamamos de natural.
Precisamos perceber que em nossa sociedade contemporânea não
temos escolhas de subjetivação, podemos ter escolhas de âmbito individual
menores, mas no âmbito da nossa constituição enquanto sujeitos vivemos em
tempos de normalização como diria Foucault.
Isso significa que pelos atuais mecanismos de poder nossa subjetividade é
imposta. É precisamente por isso que falamos em orientação sexual e não opção.
Ou seja, essas essências masculinas e femininas são impostas a cada um de
acordo com um sexo, com a justificativa de ser isso natural, inato a cada sexo.
Somos então normalizados dentro de alguns parâmetros pelos
quais nos são impostos elementos de subjetividade que constituem nossa
identidade. Sendo assim, é como se nós, heterossexuais, fossemos condicionados
a determinados prazeres de forma a ser quase inconcebível a atração sexual fora
dos parâmetros dessa identidade. Os homossexuais são uma primeira ruptura com a
divisão binária que atribui uma natureza masculina ou feminina a cada sexo.
Dessa forma os gays e lésbicas conseguem superar essa primeira formulação, mas
inda estão delimitados pela constituição de uma identidade. Da mesma forma que
os heterossexuais, os homossexuais são “normalizados” e esse processo os constitui
enquanto sujeitos titulares de uma identidade imposta.
De certa maneira tivemos alguns momentos em que essas
formas de subjetividade da sexualidade e de gênero foram questionadas. Podemos
mencionar tanto os movimentos feministas
quando as lutas LGBTT. O ponto é que
tanto a luta por igualdade quanto as lutas por reconhecimento apenas ampliaram
ou diversificaram as possibilidades da produção de identidades de gênero. Esses
movimentos conseguiram colocar em cheque as concepções de identidades de gênero
naturais ou de essências de um sexo masculino e feminino. Eles também romperam
com a imposição de usos da sexualidade por cada sexo, mostrando que os corpos
masculinos e femininos podem ter prazer fora dos usos ditos naturais.
Ao dividir o mundo em um gênero masculino e um feminino,
os gays e lésbicas seriam vistos apenas como indivíduos com “essências trocadas”.
Mas, o que os movimentos LGBTT conseguiram,
foi mostrar que eles têm uma identidade autônoma, fora dessa separação binária
entre masculino e feminino. Os movimentos feministas por sua vez colocaram em cheque a própria rigidez dessa
separação de características femininas e masculinas.
Acredito, por outro lado, que ainda assim não se conseguiu
romper com a lógica da nossa sociedade de normalização. Mesmo entre os gays e
lésbicas ainda vemos a formação de identidades próprias que se constituem
também enquanto uma orientação, uma imposição de subjetividade. O que vemos é
apenas surgir novas possibilidades de identidades ou a mera possibilidade de
não se vincular uma identidade de gênero a um sexo específico.
Creio que o caminho para uma efetiva liberdade sexual
deve ir além. Seria preciso romper com a própria constituição de identidades
sexuais. Precisaríamos sai da lógica da normalização e nos tornar senhores de
nossa própria subjetividade. Nesse sentido não mais produziríamos um masculino
e um feminino, os sexos biológicos não teriam o condão de orientar a sexualidade
e o desejo em nenhum sentido. Não teria significado dividir o mundo em
heterossexual, homossexual, bissexual... Se não formulássemos essas identidades
a atração sexual não poderia ser usada para definir os indivíduos, em verdade
essa atração nem mais obedeceria a critérios definidos. Nesse sentido os desejos
teriam como objeto pessoas, e não homens e mulheres.
Obviamente isso não é algo que possamos simplesmente
escolher romper com um mero ato volitivo. Mas acredito que o primeiro passo é
conseguirmos ver na nossa própria identidade de gênero e sexualidade uma forma
de imposição de subjetividade que de certa forma nos impede de sermos senhores
de nós mesmos.
Vou encerar essa postagem por aqui. Não consegui ser
muito claro, mas a própria proposta desse texto era apenas fazer um rascunho
dessa reflexão.
[1] Em Descartes Deus ainda perece
como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua
alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue Deus
para explicar a relação corpo/alma, deus aparece já de forma indireta. A
verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação
verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.
Descartes está ultrapassado, leia Edgar Morin por favor.
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