sábado, 24 de setembro de 2011

Existência e Essência: Rascunhos para uma reflexão sobre identidade de gênero




            Nessa postagem quero fazer algumas reflexões sobre questões que enunciei quando comentei o dia do orgulho heterossexual na postagem O Orgulho que Serve ao Preconceito. Estou mais uma vez me aventurando nesse tema que tenho pouco acúmulo. Por essa razão, o que pretendo aqui é apenas levantar algumas questões que possam contribuir para a reflexão do tema.    
            Antes de entrar propriamente no tema da produção de identidade de gênero em nosso tempo gostaria de reconstruir, de forma bastante simplificada, uma tese existencialista. O existencialismo de Sartre tem como um de seus fundamentos a tese de que “a existência humana precede sua essência.” Nesse ponto Sartre parte da leitura que Heidegger faz da modernidade. Para Heidegger, o início da modernidade está no pensamento de Descartes. Heidegger identifica no cogito cartesiano o passo primeiro do movimento moderno do homem tornando-se senhor de si mesmo.
            Ao observarmos no pensamento teológico a concepção de um deus criador do mundo, vemos ali a gênese da concepção moderna de natureza humana. Se uma entidade metafísica superior cria o homem, isso significa que, antes do ato criador, existia, no gênio dessa entidade, a idéia, a essência do homem. Nessa concepção, a essência do homem seria anterior a sua existência, e mesmo independente dela. Logo, o homem já surgiria no mundo com uma quantidade de predicados estabelecidos por Deus enquanto a essência do seu ser.
            A partir de Descartes Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade e emerge o cogito cartesiano, a verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da representação, ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[1], assegura a si mesmo enquanto aquele que é.          
            Em especial a partir do séc. XVIII, o ateísmo filosófico suprime a idéia de Deus. Mas, a idéia de essência humana se mantém agora denominada de natureza humana. O homem seria assim o mero representante individual de um conceito universal pré-determinado. Ao mesmo tempo em que o humanismo de Kant parece colocar o homem no centro do seu sistema filosófico, a abordagem antropológica formula a natureza universal desse homem de forma que o homem é um fim em si e esse fim pode ser visto no âmbito dessa universalidade humana que é a natureza própria do homem.
            Depois desse percurso podemos afirmar que o existencialismo colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência, ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência, sua própria natureza seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é uma construção do próprio homem. Para Sartre o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência” (J-P. Sartre). A isso Sartre chama subjetividade.
            Veja que essa subjetividade não se confunde com uma individualidade. A subjetividade sartriana se dá numa relação de responsabilidade do homem pelo mundo, é fruto de uma vontade. Essa vontade não é uma escolha individual, mas uma capacidade criadora.  
            Feito esse longo preparo posso agora falar propriamente da identidade de gênero. De forma geral, na nossa cultura o que se busca fazer é ligar a identidade de gênero a um sexo biológico. Ou seja, se atribui ao homem uma “natureza” masculina e à mulher uma “natureza” feminina. O ponto que quero destacar é que a partir da leitura existencialista que mencionei, devemos ver a existência como anterior a essência. Ou seja, não devemos conceber uma natureza a priori que pode ser identificada com um sexo específico.
            Se pensarmos no âmbito próprio da sexualidade isso fica um pouco mais evidente. Essa divisão estabelecida entre uma natureza feminina e uma masculina repercute em determinada forma do uso dos prazeres que se julga “natural” a cada corpo. Somando-se a isso a formulação de que, igualmente por natureza, o sexo seria mera função reprodutora, vemos a constituição aqui de uma essência, de uma natureza a posterior. Quer dizer, os corpos humanos têm a capacidade de obtenção de prazer de inúmeras maneiras, mas a nossa cultura formulou um núcleo binário que divide o uso do corpo e dos prazeres entre homens e mulheres. Sendo assim, vemos que o que se chama de natural, ou de essência para os usos dos prazeres é na realidade uma criação humana de subjetividade.
            Dessa forma as identidades de gênero são formas de subjetividade criadas pelo homem e atribuídas enquanto essências, enquanto natureza de cada sexo. O que quero apontar é que nada mais artificial do que isso que chamamos de natural.
            Precisamos perceber que em nossa sociedade contemporânea não temos escolhas de subjetivação, podemos ter escolhas de âmbito individual menores, mas no âmbito da nossa constituição enquanto sujeitos vivemos em tempos de normalização como diria Foucault. Isso significa que pelos atuais mecanismos de poder nossa subjetividade é imposta. É precisamente por isso que falamos em orientação sexual e não opção. Ou seja, essas essências masculinas e femininas são impostas a cada um de acordo com um sexo, com a justificativa de ser isso natural, inato a cada sexo.  
            Somos então normalizados dentro de alguns parâmetros pelos quais nos são impostos elementos de subjetividade que constituem nossa identidade. Sendo assim, é como se nós, heterossexuais, fossemos condicionados a determinados prazeres de forma a ser quase inconcebível a atração sexual fora dos parâmetros dessa identidade. Os homossexuais são uma primeira ruptura com a divisão binária que atribui uma natureza masculina ou feminina a cada sexo. Dessa forma os gays e lésbicas conseguem superar essa primeira formulação, mas inda estão delimitados pela constituição de uma identidade. Da mesma forma que os heterossexuais, os homossexuais são “normalizados” e esse processo os constitui enquanto sujeitos titulares de uma identidade imposta.
            De certa maneira tivemos alguns momentos em que essas formas de subjetividade da sexualidade e de gênero foram questionadas. Podemos mencionar tanto os movimentos feministas quando as lutas LGBTT. O ponto é que tanto a luta por igualdade quanto as lutas por reconhecimento apenas ampliaram ou diversificaram as possibilidades da produção de identidades de gênero. Esses movimentos conseguiram colocar em cheque as concepções de identidades de gênero naturais ou de essências de um sexo masculino e feminino. Eles também romperam com a imposição de usos da sexualidade por cada sexo, mostrando que os corpos masculinos e femininos podem ter prazer fora dos usos ditos naturais.
            Ao dividir o mundo em um gênero masculino e um feminino, os gays e lésbicas seriam vistos apenas como indivíduos com “essências trocadas”. Mas, o que os movimentos LGBTT conseguiram, foi mostrar que eles têm uma identidade autônoma, fora dessa separação binária entre masculino e feminino. Os movimentos feministas por sua vez colocaram em cheque a própria rigidez dessa separação de características femininas e masculinas.          
            Acredito, por outro lado, que ainda assim não se conseguiu romper com a lógica da nossa sociedade de normalização. Mesmo entre os gays e lésbicas ainda vemos a formação de identidades próprias que se constituem também enquanto uma orientação, uma imposição de subjetividade. O que vemos é apenas surgir novas possibilidades de identidades ou a mera possibilidade de não se vincular uma identidade de gênero a um sexo específico.  
            Creio que o caminho para uma efetiva liberdade sexual deve ir além. Seria preciso romper com a própria constituição de identidades sexuais. Precisaríamos sai da lógica da normalização e nos tornar senhores de nossa própria subjetividade. Nesse sentido não mais produziríamos um masculino e um feminino, os sexos biológicos não teriam o condão de orientar a sexualidade e o desejo em nenhum sentido. Não teria significado dividir o mundo em heterossexual, homossexual, bissexual... Se não formulássemos essas identidades a atração sexual não poderia ser usada para definir os indivíduos, em verdade essa atração nem mais obedeceria a critérios definidos. Nesse sentido os desejos teriam como objeto pessoas, e não homens e mulheres.  
            Obviamente isso não é algo que possamos simplesmente escolher romper com um mero ato volitivo. Mas acredito que o primeiro passo é conseguirmos ver na nossa própria identidade de gênero e sexualidade uma forma de imposição de subjetividade que de certa forma nos impede de sermos senhores de nós mesmos.
            Vou encerar essa postagem por aqui. Não consegui ser muito claro, mas a própria proposta desse texto era apenas fazer um rascunho dessa reflexão.

                                                                                    Ivan de Sampaio


[1] Em Descartes Deus ainda perece como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue Deus para explicar a relação corpo/alma, deus aparece já de forma indireta. A verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.       

Um comentário: