segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Breve Ensaio sobre a Classificação da Loucura na Idade Clássica


Obs: Esse texto foi escrito como reposta a uma questão proposta na aula de História da Filosofia IV[1] – Foucault, do curso de graduação em Filosofia da PUC/SP ministrada pelo Prof. Dr. Márcio Alves da Fonseca.

Breve Ensaio sobre a Classificação da Loucura na Idade Clássica 

            É possível percebermos na idade clássica um esforço teórico para classificar a loucura. Em verdade, esse esforço classificatório não se deu apenas no atinente a loucura ou as doenças. Para Foucault, a idade clássica tem na classificação uma das formas fundamentais do conhecer.
            Se o mundo havia sido organizado anteriormente pela semelhança (epistémê renascentista), na idade clássica é a representação que surge para assegurar a verdade. Foucault destaca que essa mudança da epistémê renascentista para a clássica passa por uma nova forma de ordenação do mundo. Essa ordem passa a ser a ordem do pensamento, da razão.

“O semelhante, que fora durante muito tempo categoria fundamental do saber – ao mesmo tempo forma e conteúdo do conhecimento – se acha dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença; ademais, quer indiretamente por meio da medida, quer diretamente e como que nivelada a ela, a comparação é reportada à ordem; enfim, a comparação não tem mais como papel revelar a ordenação do mundo; ela se faz segundo a ordem do pensamento e indo naturalmente do simples ao complexo.” [2]   
                       
            Dessa maneira, na idade clássica conhecer significa representar um objeto e colocá-lo em um quadro classificatório. A partir das comparações com os demais objetos e da localização do representado no quadro é que podemos ter ciência, é que podemos efetivamente ter um conhecimento seguro do objeto.
            Pois bem, diante dessa forma de se produzir a verdade na idade clássica, não é de se estranhar que o louco tenha se transformado também em um objeto de análise. Nesse caso, o objeto não era propriamente o louco. Foucault nos aponta que a tentativa de análise aqui passava por separar a loucura de seu portador, o louco.
            Dessa maneira, o louco não deveria falar sobre sua loucura. A análise tratava a loucura como uma essência a ser depreendida em sua natureza mesma.  A tentativa é de deduzir analiticamente a loucura. Diante da dificuldade de se chegar a pretensa essência pura desse mal, passou-se a buscar as manifestações materiais dessa essência, os sintomas.
            Esse “método sintomático” objetivava, através dos sintomas da loucura, colocá-la no quadro geral classificatório das doenças. Isso nada mais era do que a aplicação direta da ordenação da representação, conforme anteriormente mencionamos. Conhecer a doença pela sua classificação é a tentativa de compreender sua natureza, a racionalidade dessa natureza.
            Diante desse esforço classificatório da idade clássica, a pergunta que Foucault nos faz é: que estrutura particular tornou a loucura irredutível a esse projeto de classificação da idade clássica?
            Para responder essa questão poderíamos, com certo grau de cinismo, nos limitar a uma palavra, desrazão. Por outro lado, o que importa aqui não é propriamente o termo final, mas sim o que significa e o que permitiu que, na idade clássica, a loucura fosse colocada às sombras das luzes da racionalidade.

“A loucura, cujas vozes a Renascença acaba de libertar, cuja violência porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força.”[3]     

            Para entender um pouco esse “golpe de força” da razão que excluiu a loucura, acredito nos bastar a referência que Foucault faz na História da Loucura[4] a Descartes. A menção aqui é à primeira meditação de Descartes.
            Foucault vê exatamente no §4º da primeira meditação a completa exclusão da loucura como condição de desenvolvimento do pensamento racional. Descartes não se utiliza da loucura da mesma maneira que menciona o argumento dos sonhos ou do gênio maligno. Enquanto esses demais argumentos levam a um “dubitare” metódico, a loucura precisa ser afastada para que o próprio sujeito racional possa emergir da dúvida. A loucura, vista como um vício do sujeito em si, precisa ser excluída (posteriormente ela não só terá de ser excluída, mas corrigida).
            “E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus? Exceto, talvez, que eu me comparasse a estes dementes” [5]. Veja que nesse ponto ainda das meditações, Descartes não levanta essa questão da demência para se assegurar da existência de um mundo físico ou de seu corpo físico. Essa certeza só poderá ser atingida depois de provada a existência de Deus na terceira meditação[6]. Essa questão da loucura está aqui colocada como preliminar para garantir o próprio desenvolvimento desse raciocínio. “São dementes e eu não seria menos excêntrico se me pautasse por seus exemplos.” [7] É com essa exclusão da loucura que Descartes permite o continuar de seu processo de dúvida, de dubitare que o conduzirá certeza do cogito.

“A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser.” [8]

            Em verdade, se a loucura poderia colocar em risco o próprio sujeito que duvida (cogito) ela colocaria em cheque a própria representação na idade clássica. Heidegger, ao ler Descartes, afirma que “O cogitare é um apresentar para si aquilo que é re-presentável.” [9] Ou seja, podemos ver o cogitare de Descartes não apenas como pensar, mas sim como representar. Dessa forma, se a loucura poderia colocar em cheque as próprias faculdades do cogito cartesiano, é preciso excluí-la do universo da razão, para evitar que suas sombras ameacem o irradiar racional e o próprio “assenhormento” do mundo pelo homem como diria Heidegger.
            Dessa maneira, a loucura se tornou aqui “o outro” da razão, desrazão. A demência está fora dos parâmetros de racionalidade e definitivamente fora do sujeito racional de conhecimento. Ela não é algo acessível à razão vez que se configura enquanto aquilo mesmo que se mostra apenas na ausência da razão. Conseqüentemente, se a loucura está fora do sujeito que se “assenhora” do mundo, ela está fora desse mundo dominado pelo cogito.
            Assim, a loucura não faz parte do rol das coisas que podem ser objetivadas pelo sujeito. Como “o outro” da razão, a loucura não tem lugar na ordem do mundo da representação; ela não pode ser representada para esse sujeito racional. Fatalmente, não há lugar para a desrazão no quadro da ordem racional.
            É por esse motivo que a loucura não pôde ser classificada na idade clássica. Os parâmetros da ordem vigente não comportavam um lugar para seu oposto. A eventual apreensão da loucura pelo sujeito racional tencionaria o próprio sujeito de conhecimento. Qualquer tentativa de conhecer a desrazão por meio da razão estaria, ou fadada ao fracasso (como as tentativas de classificar a loucura), ou colocaria em cheque o próprio estatuto da razão e do sujeito de conhecimento.
            Nesse sentido, parece-me que na idade clássica foi preciso esconder a loucura para fazer emergir a razão. No momento em que se volta para a loucura, ou a razão continua vendo-a como o nada, ou permite-se que o conteúdo da loucura volte a obscurecer as luzes da razão.                                                                                                          
                           Ivan de Sampaio

P.s: Para os interessados em Foucault, lembro do Colóquio Internacional que teremos agora no final de outubro na PUC/SP.   


[1] Curso essa disciplina enquanto optativa livre da minha graduação em Direito na PUC/SP  
[2] FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Editora Martins Fontes. 9ª edição. São Paulo/SP. 2007. P. 74.     
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Editora Perspectiva. 9ª edição. São Paulo/SP. 2010.  P. 45.     
[4] Ibidem. P. 45/48.       
[5] DESCARTES, René. Meditações in: Os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo/SP. 2004. P. 250.    
[6] Para Descartes Deus será o responsável por garantir que as representações feitas pelo homem no plano do pensamento (cogito) correspondam efetivamente a objetos no mundo material. No fundo, em Descartes Deus ainda é o responsável por assegurar a relação corpo/alma.    
[7] DESCARTES, René. Ibidem.
[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Op. Cit. P. 47.
[9] HEIDGGER, Martin. Nietzsche (Vol. II). Editora Forense Universitária. São Paulo/SP. 2007. P. 110.      

2 comentários:

  1. de fato, o q sempre interessou a clínica nunca foi a loucura propriamente, mas o delírio são, o desvio que não é louco. Põe um Deleuze aí q vc vai ver o perigo de falar essas coisas crescer exponencialmente. Belo texto, mais um, parabéns.

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  2. Valeu Professor... pois é minhas leituras de Deleuze ainda não me permitem desenvolver isso. Mas logo que eu tomar coragem me debruço sobre o Anti-édipo.
    Nesse textinho, o tema era ainda bem restrito. O que acho interessante mesmo é o movimento que vai da Internação do Louco no Hospital Geral até a mudança para no Asilo Psiquiátrico. Nesse movimento fica bastante visível como a percepção da desrazão vai sendo transformada em doença mental. Então a pretensão será "curar" os loucos. A razão passa assim definitivamente a ser um delírio de luzes que necessitam não só excluir a loucura, mas iluminá-la. É nesse ponto que a vaca vai de vez pro brejo ...

    Abraço

    Ivan

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