segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Reitor Biônico e as Vítimas da “Revolução”



            Algumas semanas atrás, um monumento em construção na cidade universitária (USP) causou certa polêmica por ter como título: “Monumento em Homenagem aos Mortos e Cassados na Revolução de 1964” (sic.). O suposto erro foi rapidamente corrigido pela reitoria da USP que tentou se justificar com o velho argumento do “erro burocrático”. Fato é que a placa colocada na frente da obra foi removida, e os atuais rumores é que o novo texto trocará “revolução de 1964” por “regime militar”.  
            Mas, o que quero discutir hoje é outra coisa. Vou usar desse monumento apenas por que acredito que o episódio seja bastante ilustrativo do que quero tratar aqui, até por que o monumento em si é um projeto do NEV/USP[1] que faz um trabalho sério e de qualidade.          
            Parto aqui do seguinte pressuposto que, por julgar evidente, não quero pô-lo em discussão. Em 1964, na madrugada do dia 1º de abril aconteceu um GOLPE de Estado encabeçado pelas forças armadas que instaurou uma ditadura civil-militar no Brasil.
            Por melhor que tenham sido as intenções em construir um monumento em memória dos que foram vítimas da truculência dos anos de ditadura civil-militar, acredito que ao afirmar, nessa suposta homenagem, que a luta dessas pessoas era contra uma “revolução” nada mais é do que calar todos os motivos pelos quais elas foram perseguidas ou mortas. Ao contrário de esse monumento enaltecer a memória dos que lutaram, finda por torná-los vítimas da própria homenagem, ao negar sua causa e legitimar seus algozes como se revolucionários fossem. É preciso acrescentar que a palavra regime inda não é satisfatória. Tratar a ditadura por seu eufemismo certamente não dignifica aqueles quem se quer supostamente homenagear.   
            Agora, o curioso é observarmos que a construção desse monumento se dá dentro do Campus da Universidade de São Paulo durante a gestão do Reitor João Grandino Rodas. Penso que esse fato é ilustrativo da própria gestão desse senhor e mais, diria que a palavra revolução é um ato falho revelador.  
            Para aqueles que não sabem o processo de escolha do reitor da USP é algo bastante peculiar. De forma geral esse procedimento está descrito no Art. 36 e incisos do Estatuto da Universidade de São Paulo. O que quero destacar é que além de se tratar de um procedimento puramente indireto (na USP inexiste o conceito de eleição direta) trata-se de uma eleição em três turnos, onde em cada turno o número de candidatos e, surpreendentemente, de eleitores é reduzido. Primeiro, cerca de 1700 votantes escolhem uma lista de oito nomes, em seguida pouco menos de 300 eleitores reduzem essa lista para apenas três candidatos. Por fim, apenas um “eleitor” (o governador do estado) escolhe um nome da lista tríplice. (Detalhe, a USP tem hoje mais de 86.000 estudantes, mais de 5.000 professores e aproximadamente 16.000 funcionários[2])  
            No caso do atual reitor, além de todo esse processo de escolhas indiretas e formação de listas, o então governador José Serra ainda escolheu o segundo da lista tríplice a ele apresentada. Isso por evidente preferência político-partidária de Serra pelo atual reitor.  
            O que vemos na USP nada mais é que uma estrutura política muitíssimo similar as “eleições” do período de ditadura civil-militar. Não é de se estranhar que o atual Estatuto da Universidade tenha sido formulado precisamente em 1969. O que ocorre é que esse simulacro muito mal formulado de democracia é precisamente o mesmo utilizado pelos milicos. Quer dizer, mantém-se no âmbito da formalidade uma estrutura de alternância no poder, mas que sua operacionalização assegura que determinados interesses se preservem, mantendo-se apenas a aparência formal de uma democracia. Assim foi o início de uma ditadura envergonhada que pouco a pouco perdeu o pudor. Na USP essa estrutura se mantém, mais um resquício do entulho autoritário.
            Dessa forma, quando vemos ser erguido na cidade universitária um monumento que homenageia as vítimas da “revolução de 64” (sic.) não deveríamos estranhar tanto assim. Como já falei, esse título ofende profundamente a memória dos supostos homenageados. Mas, a verdade é que qualquer homenagem a essas vítimas da ditadura, vinda dessa estrutura de gestão da USP será um ofensa. Quando o algoz homenageia suas vítimas só podemos interpretar o fato como um sarcasmo sádico, é assim que acredito que devemos enxergar esse monumento erguido no campus Butantã da USP.
            Se o atual reitor repudia tanto assim o período ditatorial como costuma se gabar, muito melhor do que construir monumentos, que terminarão cobertos de excrementos de aves, seria se esse senhor tivesse se recusado a ser mais um reitor biônico.
            Agora, a questão é que, além de aceitar e se beneficia dessa estrutura oriunda da ditadura, o magnífico reitor ainda se utiliza, cinicamente, do discurso democrático, se comporta como se alguma legitimidade tivesse. Rodas nunca teve o apoio nem de seus pares, se tornou reitor por pura conveniência política do PSDB depois de ter sido um diretor odiado pela sua própria unidade de origem (a Faculdade de Direito). Não é nenhuma surpresa que recentemente tenha sido declarado persona non grata na Faculdade do Largo São Francisco.

            Acho que o que o reitor tem de perceber é que, por mais que a USP ainda guarde em seu regramento o entulho autoritário anti-democrático, o poder que o colocou na reitoria não tem  a capacidade de mantê-lo lá. Os governadores biônicos não hesitavam em chamar os tanques em sua defesa, o que Rodas não percebeu é que por mais que ele possa colocar a polícia no campus, as forças repressoras do Estado podem até esmagar as flores, mas isso não impede a primavera. Talvez seja esse o grande dever histórico desse reitor, ao desnudar o absurdo que é um reitor biônico usar o discurso democrático Rodas pode finalmente evidenciar que o autoritarismo é precisamente a causa dos perigos que diz evitar. A maior homenagem que a Universidade de São Paulo pode fazer às vitimas da ditadura é continuar a luta que elas começaram.

Ivan de Sampaio



[1]  Núcleo de Estudos da Violência da USP 
[2] Nesse número não está computado o número de funcionários terceirizados.  

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