Algumas semanas atrás, um monumento em construção na cidade universitária (USP) causou certa
polêmica por ter como título: “Monumento em Homenagem aos Mortos e Cassados na
Revolução de 1964” (sic.). O suposto erro foi rapidamente corrigido pela
reitoria da USP que tentou se justificar com o velho argumento do “erro
burocrático”. Fato é que a placa colocada na frente da obra foi removida, e os
atuais rumores é que o novo texto trocará “revolução de 1964” por “regime
militar”.
Mas, o que quero discutir hoje é outra coisa. Vou usar
desse monumento apenas por que acredito que o episódio seja bastante
ilustrativo do que quero tratar aqui, até por que o monumento em si é um
projeto do NEV/USP[1]
que faz um trabalho sério e de qualidade.
Parto aqui do seguinte pressuposto que, por julgar
evidente, não quero pô-lo em discussão. Em 1964, na madrugada do dia 1º de
abril aconteceu um GOLPE de Estado
encabeçado pelas forças armadas que instaurou uma ditadura
civil-militar no Brasil.
Por melhor que tenham sido as intenções em construir um
monumento em memória dos que foram vítimas da truculência dos anos de ditadura
civil-militar, acredito que ao afirmar, nessa suposta homenagem, que a luta
dessas pessoas era contra uma “revolução” nada mais é do que calar todos os
motivos pelos quais elas foram perseguidas ou mortas. Ao contrário de esse
monumento enaltecer a memória dos que lutaram, finda por torná-los vítimas da
própria homenagem, ao negar sua causa e legitimar seus algozes como se
revolucionários fossem. É preciso acrescentar que a palavra regime inda não é
satisfatória. Tratar a ditadura por seu eufemismo certamente não dignifica aqueles
quem se quer supostamente homenagear.
Agora, o curioso é observarmos que a construção desse
monumento se dá dentro do Campus da Universidade de São Paulo durante a gestão
do Reitor João Grandino Rodas. Penso que esse fato é ilustrativo da própria
gestão desse senhor e mais, diria que a palavra revolução é um ato falho
revelador.
Para aqueles que não sabem o processo de escolha do reitor da USP é algo bastante peculiar. De
forma geral esse procedimento está descrito no Art. 36 e incisos do Estatuto da Universidade de São Paulo.
O que quero destacar é que além de se tratar de um procedimento puramente
indireto (na USP inexiste o conceito de eleição direta) trata-se de uma eleição
em três turnos, onde em cada turno o número de candidatos e, surpreendentemente,
de eleitores é reduzido. Primeiro, cerca de 1700 votantes escolhem uma lista de
oito nomes, em seguida pouco menos de 300 eleitores reduzem essa lista para
apenas três candidatos. Por fim, apenas um “eleitor” (o governador do estado)
escolhe um nome da lista tríplice. (Detalhe, a USP tem hoje mais de 86.000
estudantes, mais de 5.000 professores e aproximadamente 16.000 funcionários[2])
No caso do atual reitor, além de todo esse processo de
escolhas indiretas e formação de listas, o então governador José Serra ainda escolheu o segundo da
lista tríplice a ele apresentada. Isso por evidente preferência político-partidária de Serra pelo atual reitor.
O que vemos na USP nada mais é que uma estrutura política
muitíssimo similar as “eleições” do período de ditadura civil-militar. Não é de
se estranhar que o atual Estatuto da Universidade tenha sido formulado
precisamente em 1969. O que ocorre é que esse simulacro muito mal formulado de
democracia é precisamente o mesmo utilizado pelos milicos. Quer dizer, mantém-se
no âmbito da formalidade uma estrutura de alternância no poder, mas que sua
operacionalização assegura que determinados interesses se preservem,
mantendo-se apenas a aparência formal de uma democracia. Assim foi o início de
uma ditadura envergonhada que pouco a pouco perdeu o pudor. Na USP essa
estrutura se mantém, mais um resquício do entulho autoritário.
Dessa forma, quando vemos ser erguido na cidade
universitária um monumento que homenageia as vítimas da “revolução de 64”
(sic.) não deveríamos estranhar tanto assim. Como já falei, esse título ofende
profundamente a memória dos supostos homenageados. Mas, a verdade é que
qualquer homenagem a essas vítimas da ditadura, vinda dessa estrutura de gestão
da USP será um ofensa. Quando o algoz homenageia suas vítimas só podemos
interpretar o fato como um sarcasmo sádico, é assim que acredito que devemos
enxergar esse monumento erguido no campus Butantã da USP.
Se o atual reitor repudia tanto assim o período
ditatorial como costuma se gabar, muito melhor do que construir monumentos,
que terminarão cobertos de excrementos de aves, seria se esse senhor tivesse se
recusado a ser mais um reitor biônico.
Agora, a questão é que, além de aceitar e se beneficia
dessa estrutura oriunda da ditadura, o magnífico reitor ainda se utiliza,
cinicamente, do discurso democrático, se comporta como se alguma legitimidade
tivesse. Rodas nunca teve o apoio nem de seus pares, se tornou reitor por pura
conveniência política do PSDB depois de ter sido um diretor odiado pela sua própria
unidade de origem (a Faculdade de Direito). Não é nenhuma surpresa que recentemente
tenha sido declarado persona non grata na Faculdade do Largo São Francisco.
Acho
que o que o reitor tem de perceber é que, por mais que a USP ainda guarde em
seu regramento o entulho autoritário anti-democrático, o poder que o colocou na
reitoria não tem a capacidade de
mantê-lo lá. Os governadores biônicos não hesitavam em chamar os tanques em sua
defesa, o que Rodas não percebeu é que por mais que ele possa colocar a polícia
no campus, as forças repressoras do Estado podem até esmagar as flores, mas
isso não impede a primavera. Talvez seja esse o grande dever histórico desse
reitor, ao desnudar o absurdo que é um reitor biônico usar o discurso
democrático Rodas pode finalmente evidenciar que o autoritarismo é precisamente
a causa dos perigos que diz evitar. A maior homenagem que a Universidade de São
Paulo pode fazer às vitimas da ditadura é continuar a luta que elas começaram.
Ivan de Sampaio
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