domingo, 5 de dezembro de 2010

A Irracionalidade de Estado

Inicio hoje pedindo desculpas pela demora em retomar as postagens aqui. Agora que a tormenta de final de ano já foi minimamente amenizada consigo dedicar uma parte do meu tempo para esse blog novamente.
Bem, nesses últimos dias temos visto a cobertura intensa da mídia sobre a invasão do complexo do Alemão no Rio de Janeiro. Passei a semana passada inteira frustrado por não conseguir tempo para organizar minhas idéias sobre o ocorrido e postá-las aqui. Agora que finalmente pude fazê-lo, percebi que não quero comentar o caso do Rio. Há um post no Blog do Brasil & Desenvolvimento intitulado O Estado de polícia na sociedade de classes  escrito pelo João Telésforo que representa muito do que penso sobre as atitudes da polícia no Complexo do Alemão.    
Dessa maneira não entro aqui no mérito de há abusos ou não há abusos, a população local apóia a polícia ou não, acredito que isso já foi muito tratado em outros blogs (mencionarei alguns ao final desse post). Não vou comentar as notícias e sua veracidade, me focarei então um pouco nos objetivos dessa operação.   
            Grosso modo, toda essa operação foi justificada por duas bandeiras: combate ao tráfico de entorpecentes e combate ao poder paralelo. Meu ponto é que, para alcanças essas finalidades, a operação que vemos é, no mínimo, inútil. Ela não tem a capacidade de por fim ao tráfico ou mesmo minar o poder paralelo, muito pelo contrário, ela corrobora para o fortalecimento desses dois “males” que propõe combater.
            Para percebermos isso é preciso partir de uma constatação inicial concernente ao paradigma atual de razão de Estado. Não é segredo que hoje vivemos dentro de uma lógica de estado liberal, dito de forma muito genérica, trata-se de orientar a veredicção política através da lógica do mercado, ou seja, se Anália a intervenção política Estatal com critérios econômico. Nesse sentido, uma política, dentro dessa razão de Estado liberal, é julgada como funcional ou não por meio de critérios “mercadológicos” de eficiência econômica. Não vou aqui esboçar minhas críticas a essa idéia, mas quero iniciar apontando para o fato de que uma política “criminógena” sobre as drogas vai na contra mão dessa razão de Estado liberal.
            Vejamos melhor isso. O trafico de drogas, nada mais é do que uma relação econômica, mas de que tipo de relação econômica? Bem, trata-se de uma atividade que trabalha com um insumo de primeira necessidade para o usuário. Dessa forma, lidamos com um mercado consumidor de consumo preponderantemente inelástico. Isso significa que independentemente do preço do produto o consumo se mantém ou sofre alterações muito insipientes.
            Pois bem, quando se adota uma política de policiamento extensivo ou de combate direto ao tráfico (como no caso Rio) o que se processa é um significativo aumento do risco nessa atividade econômica. Nesse caso, o aumento do risco ocasiona o aumento do peço da droga, entretanto, por se tratar de insumo de consumo inelástico esse aumento não reduz o consumo. Por outro lado, o aumento significativo do risco finda por eliminar os traficantes menores e mantém apenas aqueles que tem capital suficiente para suportar esse elevado risco e manter a atividade lucrativa compensando suas perdas pelo alto volume de negócios. Dessa maneira o que vemos é uma concentração do tráfico formando uma situação econômica de oligopólio. O Risco elevado não elimina atividade econômica que lida com mercado de consumo preponderantemente inelástico. Assim como é impossível criar uma maquina de repressão penal tão forte que elimine toda forma de entorpecentes[1].      
            Diante disso, o tráfico oligopolizado ganha cada vez mais organicidade e passa a ter condições de formular, cada vez mais elaboradas, “estratégias de mercado”. Um exemplo pode ser a ação do tráfico ao vender entorpecentes com um preço reduzido para novos consumidores enquanto onera os compradores habituais para que arquem com os custos dessa política elevando os custos da droga para esses últimos. O que quero salientar é que estratégias dessa complexidade só passam a ser possíveis nesse cenário de oligopólio do trafico.
            Além disso, essa política de combate policial ao tráfico gera um paulatino aumento na violência. Primeiro por que a alta dos preços da droga pode gerar uma criminalidade difusa de crimes patrimoniais para manter o vício dos usuários habituais. Segundo por que, quanto maiores os investimentos do tráfico, maior a demanda dos traficantes em medidas que assegurem esses investimentos. Essas medidas vão desde corrupção das instituições estatais até o investimento em meios que fortaleçam a presença do tráfico na construção de um poder paralelo, que se pauta por essas relações de fato não comportadas dentro da normatividade Estatal.
            Assim, chegamos ao meu segundo ponto, medidas de intervenção policial, não enfraquecem o dito “poder paralelo”. Em verdade, essa política fortalece o tráfico e sua capacidade de assegurar essas “instituições” paralelas.
            Mas o que quero destacar sobre essa estrutura de poder paralelo é que, ao contrário do que se pensa, essa forma de poder para-estatal não se limita a uma estrutura armada de traficantes. Esse “poder” não está no tráfico[2], essas relações de poder se fundam em necessidades que ou não são atendidas ou não são comportadas dentro da estrutura estatal. Sendo assim, o tráfico é apenas uma dessas estruturas fora do Estado que percebeu como se utilizar dessas necessidades não atendidas pelo Estado. No mais, quanto maior a organização do tráfico e quanto mais oligopolizada a sua atividade, mais ele consegue se utilizar dessas estruturas de poder em seu benefício.
            Em síntese, as estruturas precárias e irregulares das comunidades em grandes cidades como o Rio é o que gera as demandas (negligenciadas pelo Estado) que o tráfico manejou suprir de forma a atender seus próprios interesses.
            Sendo assim, acredito que podemos concluir que essa lógica de combate puramente criminal ao tráfico é absolutamente inútil para as finalidades que afirma perseguir. Essa política só fortalece o tráfico, provocando a concentração econômica do setor em oligopólios, que passam a ter meios mais elaborados de manter sua atividade e de intervir nos pontos onde o Estado se ausenta. Esse investimento do tráfico na omissão do Estado se funda na busca por assegurar os investimentos do próprio tráfico.
            È dessa forma que vemos que, partindo de uma análise liberal de razão de Estado, políticas de ocupação militar e policial de locais como o Complexo do Alemão são muito mais irracionais do que qualquer outra coisa. Aparentemente, servem apenas como estrutura de espetáculo para que se imagine que algo está sendo feito para solucionar os problemas atinentes ao tráfico de entorpecentes. A pergunta que resta é: ao que serve essa política criminal, se vista dentro do contexto da razão de Estado liberal ela não se justifica? Na próxima postagem buscarei explorar mais essa pergunta. 
            Sobre o caso do Rio em especial recomendo a leitura de alguns outros posts muito bons. Primeiro um post extraordinário, que já citei no início do texto, no blog Brasil & Desenvolvimento chamado O Estado de polícia na sociedade de classes do João Telésforo.  Além disso, um post, também muito bom, do Hugo: A violência para muito além do Rio de Janeiro e também Ainda O Rio: Padilha e a favela eterna. Recomendo ainda a leitura do Jornal Brasil de Fato que fez uma boa cobertura sobre as invasões do Complexo do Alemão.   
            Bem, por hoje é isso. Tentarei agora manter o ritmo das postagens.
Abraço a todas e todos
Ivan Sampaio

P.s: gostaria apenas de fazer uma ressalva. De forma geral não gosto dessa análise puramente “mercadológica” liberal, mas acredito que nesse caso ela seja capaz de mostrar muito sobre a forma que o Estado tem atuado e as incoerências e irracionalidade de sua política em relação às drogas.     
P.p.s: Desculpem a postagem mais extensa, mas depois de uma semana sem escrever nada não consegui ser mais sintético.  


[1] Até hoje, mesmo países com orçamentos de segurança infinitamente maiores que o nosso e com polícias muito mais capacitadas são incapazes de realizar essa tarefa.
[2] Em verdade o poder não é uma entidade, não está em nenhum lugar ele apenas se manifesta por meio de relações. 

10 comentários:

  1. Ivan,

    Sim, é isso. O problema é que se a questão do vício em drogas pudesse ser enfrentada pela singela eliminação do tráfico pelo Estado, ainda assim, isso não se operaria por um confronto nesses moldes - mas talvez por operações de inteligência, especialmente no que concerne à lavagem de dinheiro. Para além da análise liberal, a questão não é nem a existência da demanda em si, mas como ela é, antes de mais nada, produzida e, sobretudo, porque essa demanda em específico é produzida. Em outras palavras, não, a proibição legal não neutralizará essa realidade e, não, mesmo dentro dessa lógica, essa operação, para além de toda pirotecnia, é um equívoco. Sobre o último ponto, ele é tão flagrante que eu o tomo como uma mera justificativa para legitimar a missão: O que está em jogo aqui é luta por domínio territorial, especificamente de um território tido por inútil, mas que com a iminência das Olimpíadas e da Copa do Mundo, isso se torna um problema para o sistema. É um quadro grave que denuncia o estado de emergência em que nos encontramos.

    abraços

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  2. Disse tudo que precisa ser dito dentro de uma perspectiva econômica. Um grande abraço,

    Mário Flecha

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  3. Debate difícil, até por que no caso das Olimpíadas e da Copa muito pouco foi debatido na famigerada grande mídia quando viramos sede destes eventos, só quem questionou foi o Kfoury e isso reverbera também na forma que o caos pelo qual o Rio de Janeiro foi tomado nas semanas anteriores. Querendo ou não a cobertura chinfrim que temos em geral contribui e muito para o que vemos hoje de demonstração de solidariedade há algumas coisas admissíveis, é o tipo: no Haiti não pode, mas na nossa cozinha pode...

    É de uma tamanha hipocrisia, uma pena o debate ter sido tão escamoteado por diversos setores da comunicação, agora vamos ver como se segue a repercussão depois que o Cabral se pronunciou favorável a legalização das drogas leves.

    Luka

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  4. Muitissimo interessante o seu blog. Bom mesmo. Post atualizadissimo.Estou aqui lhe convidando a visitar o meu blogue e se possivel seguirmos juntos por eles. Estarei grato esperando por voce lá
    Abraços de verdade

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  5. Iniciativa interessante (parece bom não deixar uma teoria útil de lado por ser contra a “análise liberal”). Deixando os elogios de lado, tenho uma ou outra critica.
    A primeira é sobre ter chamado a análise de análise liberal. a) Como a maioria das grandes teorias econômicas está integrada com teorias psicológicas, acho que faltou inserir as explicações sócio-psicológicas pertinentes ao liberalismo que identifiquem as razões para o tráfico (discordo, então, do colega aí de cima, já que “como ela é, antes de mais nada, produzida e, sobretudo, porque essa demanda em específico é produzida” não é algo além da explicação liberal – apenas o post não fez uso das explicações liberais sócio-psicológicas para responder esta questão; é preciso ampliar a idéia que “Nesse sentido, uma política, dentro dessa razão de Estado liberal, é julgada como funcional ou não por meio de critérios “mercadológicos” de eficiência econômica” – já que, antes de tudo, há uma questão de sócio-psicologia e filosofia liberal, a qual funda concepções “mercadológicas”. Acredito que para um austríaco, por exemplo, as “estruturas precárias e irregulares das comunidades em grandes cidades como o Rio” não gera as “demandas (negligenciadas pelo Estado) que o tráfico manejou suprir de forma a atender seus próprios interesses”; de forma ultra-concisa, desejos geram estas demandas, o Estado torna o atendimento a estas demandas uma destruição de riquezas e, conseqüentemente, a desigualdade econômica admitida no capitalismo austríaco corrompe-se em uma desigualdade que têm em um dos pólos a miséria.

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  6. b) Um dos temas mais recorrentes das teses liberais é o tema da “proibição”. A teoria mais liberal que conheço, por exemplo, repudia tanto a idéia de legitimidade do uso da força da qual o Estado faz uso quanto a criação de regras proibitivas amparadas por tal força (principalmente se criam, artificialmente, oligopólios ou monopólios, permitindo a manteneção forçada – já que privilegiada pelo Estado – de economias de escala; essa artificialidade, segundo a tese liberal, destrói riqueza – no caso, a proibição apenas criminaliza certos indivíduos ao invés de gerar empregos, pagamentos etc, e, ao invés de evitar a atividade, apenas torna seus efeitos nocivos). Talvez você pudesse ter explorado um pouco mais a critica liberal ao Direito (por exemplo: alguns austríacos gostam de, ao invés de usar o vocábulo "Direito", falar, em tom de paródia, no "mecanismo totalitário de destruição de liberdade e riqueza").
    A segunda parte das criticas. Nem todas as drogas podem ser classificadas como inelásticas, principalmente levando em consideração certas classificações de consumidores. Viciados em crack, cocaína e cola tentarão adquirir estes produtos mesmo com alterações nos preços; mas usuários eventuais de cocaína, haxixe, maconha e sintéticos, não (exatamente pelo uso “recreativo”; playboys consumidores pagarão até um certo limite, depois substituirão por álcool, por exemplo, ou por “drogas de farmácia”; camadas com menor renda possivelmente deixarão de consumir por certo tempo, dado que obviamente nem todos pagarão o preço extra e nem todos cometerão crimes para obter tais produtos); assim sendo, “O que quero salientar é que estratégias dessa complexidade só passam a ser possíveis nesse cenário de oligopólio do trafico”; no caso, acredito que apenas viciados poderiam ser amplamente onerados, já que “playboys” os quais sejam consumidores habituais só poderiam sê-lo até um certo limite. É preciso lembrar, também, que, generalizando esse caso especifico, temos que oligopólios diminuem a complexidade das estratégias de mercado em comparação com situações de concorrência não artificial e, conseqüentemente, há prejuízo a todos os consumidores.

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  7. Assim sendo, o aumento do risco ocasiona corte de gastos, como, por exemplo, cortes nos negócios menos lucrativos (como a venda de certas drogas; como uma menor oferta de serviços de gás, bebidas etc que traficantes prestam; lembrando, ainda, que a busca por lucros e a desconfiança de traficantes com policiais, nesse período, pode levar alguns traficantes a diminuir despesas com autoproteção ao invés de aumentar o investimento nesse “setor” – acredito que ambas as coisas aconteceriam, já que possivelmente as taxas policiais de proteção devem estar mais caras e nem todos estariam dispostos a pagar o custo extra a toda a sua extensa lista de policiais, juízes, políticos, promotores e delegados) ou diminuição da qualidade dos produtos (que é conseqüência eventual da formação de oligopólios; drogas com menor pureza, por exemplo).
    Finalmente, acho que a violência, na região especifica e a curto prazo, diminui (não sendo totalmente inútil ao que se, discursivamente, propõe; além disso, sobre “Aparentemente, servem apenas como estrutura de espetáculo para que se imagine que algo está sendo feito para solucionar os problemas atinentes ao tráfico de entorpecentes”, penso que “espetáculo“ é politicamente útil; é claro que essa diminuição a curto prazo possui, como custo, a discriminação). Em médio prazo a medida é inútil, e em longo prazo, como toda medida de curto prazo que se generaliza no tempo, é prejudicial (não sou contra todas as medidas de curto prazo; é claro que há problemas quando apenas elas são feitas).

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Por fim, uma critica ao liberalismo. O Estado observa o mercado politicamente, possuindo, portanto, uma concepção política da economia. Exigir que o Estado compreenda o mercado economicamente e que o faça sem privilegiar o aspecto político é exigir algo que vai além de suas capacidades (sendo assim, culpar exclusivamente o Estado, por tudo, parece ser um pouco simplista). Aos austríacos, que compreendem a 1a parte (observação do Estado) e ignoram completamente a 2a (simplismo da culpabilização exclusiva do Estado), resta esperar o fim do Estado. E acredito que cogitar algo assim significa esperar algo que não vai acontecer tão cedo.

    T+

    André Ichiro

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  10. Oi, Ivan,

    Acabo de ler um artigo do Pedro Serrano sobre a legalização das drogas, e me lembrei do seu texto.

    Muito obrigado pela honrosa menção ao meu post lá no blog do B&D!

    Acho que você demonstrou bem como a operação do Alemão não ajuda a combater o tráfico de drogas. Quanto à recuperação do domínio do território para o Estado... Um problema mais complexo, que vou deixar para comentar depois.

    Abraço,
    João Telésforo

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