Ontem (21 de novembro de 2011) li um
artigo deplorável do Professor Luiz Felipe Ponde, “O erro de Foucault”. Nesse artigo, Ponde demonstra toda sua ignorância
a respeito da obra e do pensamento de Michel Foucault e tenta ainda se utilizar
de seus preconceitos baratos contra o filósofo francês para denegrir o
movimento estudantil da USP.
Pensei ontem em escrever uma resposta
a esse artigo. Mas, depois de conversar com alguns amigos, percebi que não
valeria o esforço. Fato é que Ponde hoje não passa de um polemista e qualquer
resposta a ele apenas abriria um flanco para insultos. Felizmente, hoje, ao ler
novamente a Folha de São Paulo, me deparei com um artigo do Prof. Vladimir
Safatle, “Sem resposta”. Trata-se de
uma excelente resposta para Ponde, sem citá-lo uma única vez. (Há quem diga que
foi, em verdade, uma resposta ao Reinaldo Azevedo. É possível, mas como o
Reinaldo Azevedo republicou o texto do Ponde, tanto faz).
Recomendo a leitura de ambos os
artigos. De minha parte, não escrevi e não escreverei nenhuma resposta ao
artigo do Ponde. Farei diferente. Deixarei a resposta a cargo do próprio
ofendido. Sendo assim, publico aqui um artigo de Michel Foucault que foi o
prefácio da edição americana do livro Anti-Édipo do Deleuze e Guattari. Um
amigo publicou esse texto recentemente em seu blog (Pedra no Curral) e acredito que não haja momento mais apropriado
para trazê-lo de volta a tona. Recomendo a todos que não sigam o exemplo do
Ponde e leiam o autor antes de fazer julgamentos.
Durante os anos 1945-1965 (falo da
Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso
político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com
Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os
sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três
condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e
de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
Depois, vieram cinco anos breves,
apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o
Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no
interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política
revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a
exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo
conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação
familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O
sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve
sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem
Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma:
Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
Mas é isso mesmo o que se passou?
Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da
prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que
não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma
experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas?
Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas
zonas.
O Anti-Édipo mostra, pra começar, a
extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa na
difamação dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo,
nos incita a ir mais longe.
Seria um erro ler o Anti-Édipo como
a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma
anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e
tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de
dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso
buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de
conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor
maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se
fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente
abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a
análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista
contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do
porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento,
no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera
do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars
erotica, ars theoretica, ars politica.
Daí os três adversários aos quais o
Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força,
que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios
diferentes.
1)
Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses
que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os
burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
2)
Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que
registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização
múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
3)
Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do
AntiÉdipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o
fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão
bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que
está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o
fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos
explora.
Eu diria que o Anti-Édipo (que seus
autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se
escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu
sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo
tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não
se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante
revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e
nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em
nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que
estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte,
espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.
Prestando uma modesta homenagem a
São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à
vida não fascista.
Essa arte de viver contrária a todas
as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é
acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da
seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da
vida cotidiana:
- Libere a ação política de toda
forma de paranóia unitária e totalizante;
- Faça crescer a ação, o pensamento
e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por
subdivisão e hierarquização piramidal;
- Libere-se das velhas categorias do
Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento
ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso
à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o
fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é
produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser
triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É
a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da
representação) que possui uma força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar
a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para
desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize
a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um
multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela
restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O
indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela
multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser
o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador
de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder.
Poder-se-ia dizer que Deleuze e
Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de
poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se
encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira
façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam
seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por
assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são
as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto
batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde,
contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior
seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas,
colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem
a amena tirania de nossas vidas cotidianas.
[Michel Foucault. Preface
in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and
Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV.
Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento]
Não sei porque diabos a edição brasileira, da Editora 34 - uma tradução muito boa, aliás -, não traz esse prefácio. Foucault atinge o cerne do Anti-Édipo: sim, um livro de ética - o que não poderia ser um elogio maior para o spinozano Deleuze, que tentou e executou com êxito seu projeto. Mas também uma crítica à economia política e uma crítica à psicanálise - ao mesmo tempo, explorando justamente a zona escura na qual elas interagem e mantém seu vínculo secreto e profundo. E tudo passa diante dos nossos olhos, como um sonho psicodélico...o revolucionário paranoico - o proto-burocrata em pele de libertador -, o burocrata ele mesmo, o psicanalista enquadrando o desejo ao Édipo numa relação mercantil de dívida infinita, máquinas técnicas, máquinas sociais, máquinas desejantes - o inconsciente como produtor, como usina -, os agenciamentos, o corpo-sem-órgãos...
ResponderExcluirPois é Hugo. Realmente esse prefácio não consta na edição brasileira. Eu imagino que isso tenha acontecido por que a edição brasileira foi formulada a partir da edição francesa do livro. Acredito que esse prefácio só foi incluído na edição estadunidense. De toda forma eu também lamento. Se serve de consolo, acredito que ao menos esse texto está nos ditos e escritos do Foucault.
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