sábado, 13 de agosto de 2011

Garçom Tira a Conta da Mesa...


Acabei de perceber que essa semana foi o dia 11 de agosto, dia do advogado. Como não tinha escrito nada sobre a data, vou publicar então esse pequeno texto que escrevi ainda no primeiro ano da faculdade de direito, para o jornal do C.A na época, está um pouco mal escrito... Mas não é de todo ruim. Hoje, teria escrito de forma bastante diferente. Quanto ao conteúdo, mantenho minha opinião daquela época. Segue o texto. 

Garçom Tira a Conta da Mesa...

“Mesmo que eu não possa mudar seu comportamento, espero ao menos causar sua inquietação...” (Fiódor Dostoievski).
           
            Por meio deste artigo me proponho a criticar uma tradição dos estudantes de direito. Sei que essa crítica tem todos os atributos para não ser aceita num meio onde a tradição ocupa lugar de tamanho destaque, mesmo assim não posso deixar de mostrar aqui o que acredito que o “pindura” de fato representa e o que os estudantes de Direito perpetuam ao praticá-lo.
            Vale aqui relembrar a origem da tradição do “pindura”. O “pindura” teve início quando a Universidade do Largo São Francisco era a única a lecionar o curso de Direito em São Paulo. Nessa época o “pindura” era muito mais uma homenagem ao restaurante do que uma mera oportunidade para “comer de graça” ou uma “brincadeira” universitária. Os estudantes de direito tinham a refeição gratuita em troca de um pomposo discurso de agradecimento e elogio ao estabelecimento. Com o passar do tempo essa tradição foi distorcida e os alunos de direito passaram a impor esse costume mesmo aos restaurantes que não se dispunham a acatá-lo. Hoje, o “pindura” se tornou uma mera oportunidade para os estudantes se banquetearem de graça nos restaurantes sem temer nem uma sanção.
            Um fundamento crucial que permite aos estudantes de direito realizar o “pindura” é o texto do caput do art. 176 do código penal que prevê o seguinte: “Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena – Detenção de 15 dias a 2 (dois) meses, ou multa.” Com base neste artigo os estudantes descaracterizam o crime de fraude afirmando  possuir recursos para pagar e somente não o fazem em nome da tradição. Dessa forma, fica claro que os estudantes apenas se aproveitam de uma lacuna no ordenamento e através desta impõem sua vontade ao estabelecimento. O texto do artigo 176 leva ainda a uma pergunta: Que conduta o código penal condena com esse artigo? Segundo o texto do próprio artigo a conduta ilícita não esta no ato de não pagar pelo serviço, mas sim no fato de não ter como pagar, logo o crime, segundo o artigo 176, não está fundamentalmente na má fé daquele que utilizou o serviço, o crime seria agir de ma fé e ser pobre. O advogado, por poder pagar e não querer não pode ser imputado, não obstante, se alguém de fato não pode pagar pelo serviço, esse sim cumpre pena de 15 dias a dois meses? Onde se encontram a igualdade e a proporcionalidade nesse caso? Veja, não defendo que os estudantes de direito comecem a ser imputados criminalmente pelo “pindura”. Pessoalmente não acredito na criminalização de nenhuma conduta. Mas essa análise legal pode servir para evidenciar o real significado dessa estranha tradição.     
            O “pindura” representa mesmo uma grande imposição de poder. A tradição só conseguiu se perpetuar por todos esses anos por que o próprio sistema que aplica sanções no Brasil é composto por pessoas absolutamente condescendentes com tal pratica por também terem-na realizado durante a faculdade. Logo, essa forte imposição de poder se evidencia quando o gerente do restaurante lesado decide levar o caso para ser resolvido pelas vias legais e não consegue imputar os estudantes, pois, ou o delegado será complacente com os infratores, ou mesmo que o chefe de polícia decida aceitar a queixa e levar o processo adiante o juiz não aceitará a denuncia. O estudante, com isso, se sente legitimado a afirmar: “Está vendo, é para isso que eu estudo; para fazer a balança da justiça pender a meu favor e trazer a espada da sanção para minha mão”. Diante dessa situação o gerente ou dono do restaurante é forçado a se resignar, com o sentimento de impotência por perceber que tem contra si, a polícia, o poder judiciário e até mesmo uma autarquia do Estado, a OAB.
            Além de todas as questões referidas, ainda existe um ponto de relevância na questão; a imagem do advogado. Diante de todas essas questões, o “pindura” apenas corrobora com a reputação ruim que o advogado já tem em nossa sociedade. Já são muito comuns, as piadas a respeito dos advogados. Também, de certa forma, já se construiu no imaginário comum a figura do advogado “esperto” que manipula o ordenamento jurídico de acordo com a situação que o favorece. Será que é isso que os estudantes de direito querem, fortalecer ainda mais essa imagem negativa apenas para manter uma tradição como o “pindura”?
            O “pindura” é isso, uma tradição classista que apenas legitima uma imposição de poder através de uma falha no ordenamento jurídico. Isso com o pretexto de ser uma brincadeira; aliás, esse caráter lúdico é outro aspecto do “pindura” que auxilia na sua manutenção, pois a piada consegue acobertar todo real significado da tradição. Cabe aqui apenas fazer uma pequena defesa dos estudantes quanto ao seguinte. Existem, três possibilidades que levam os estudantes a praticar o “pindura”: primeiro, a ingenuidade, o estudante pode levar a tradição, de fato, apenas na brincadeira e não ter pensado no que ela realmente representa. Segundo, o futuro bacharel pode ter consciência do que a tradição do “pindura” significa e concorda com esse significado. Por último, o estudante pode ainda saber de todo o significado do “pindura” e praticá-lo apenas por que afinal “todo mundo faz” e ele simplesmente ignora o que a tradição representa. Quero informá-los que, se os senhores leitores se encontravam na primeira categoria, de ingenuidade, depois desse artigo já não podem usar desse argumento para se defender.
            No curso de Direito, logo no primeiro semestre, já aprendemos que o direito atua no campo do “dever ser”. Será que é isso então que deve ser? Estuda-se direito para que a justiça seja favorável a nós? Para que a espada da sanção de fato esteja em nossas mãos? Para de fato permitir que uma classe profissional detenha o monopólio da justiça?
            As faculdades de direito em São Paulo tem a tradição como quase parte do seu currículo. Parece ate que pedagogicamente se busca forma o tipo de profissional que busca o privilégio ao invés de ideais de equidade. É salutar lembrar se a tradição serve para sustentar práticas de privilégios classistas como o “pindura”, ela não deve ser exaltada, mas sim abolida. A tradição não é um fim em si. É ai que talvez caiba ao direito lutar em favor do que deve ser.   

Ivan de Sampaio 

4 comentários:

  1. Muito bom, Ivan. Lembro-me que eu era um desses a fazer tais piadinhas de advogado durante nossas aulas e me surpreendia (positivamente) com sua concordância.

    É de se espantar como tradições da "Lei de Gérson" se perpetuam em nossa sociedade, e com os advogados não é diferente. Um exemplo banal, que diz respeito à "elite intelectual" de nosso país: os alunos da USP são simplesmente incapazes de pegar uma fila de bandejão! Sempre se busca o amigo (nesse caso, o conhecido basta) que cederá o lugar na frente. Nesse caso, a tradição e simbolismo da amizade vem à tona: não ceder lugar significa não dar valor à amizade.

    Enfim, sem me alongar demais, meu ponto é o de que estamos cercados - e impotentes individualmente -, de uma série de tradições que usam da má fé para vantagem própria. Seu texto é ótimo!

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  2. Valeu Raul! Relendo esse texto agora posso dizer que concordo com o conteúdo... mas faz anos que o escrevi e hoje teria escrito de maneira diferente. Acho que o ponto que deveria ter destacado é o caráter pedagógico dessa tradição. Terminei apenas enunciado isso... mas fica a ideia para um texto futuro quem sabe.

    Abraço!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Hoje tive a oportunidade se saber algo que considero interessante, um termo simples como "pindura" ter um significado de causar prejuizos a alguem.
    Tradicoes diversas foram abolidas no decorrer do tempo e esta com certeza ja deveria ter sido.
    Agradecido pelas informacoes que descobri por acaso!
    Muito bom texto!

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