sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ensaio sobre a seção 157 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein

Esse é mais um pequeno trabalho que fiz para o curso de filosofia da USP. Nesse caso tentei propor uma leitura de uma seção das Philosophical Investigations de Wittgenstein a partir da leitura de outra obra do autor o The Blue Book. O esforço que fiz foi também para buscar fazer as reflexões da forma com Wittgenstein busca fazer nesse livro que usamos como referência. O resultado é um texto bem modesto, mas que terminei simpatizando com ele. Sendo assim, compartilho-o aqui. Segue o texto.       

Ensaio sobre a seção 157 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein

“Há metafísica bastante em não pensar em nada.” [1]
         (Alberto Caeiro)       
           
            Quando Wittgenstein afirma que o aprendizado da leitura em verdade se trata de uma mudança no comportamento do aprendiz[2], será que somos capazes de compreender, prima facie, o significado dessa assertiva?
            Para entender o conteúdo dessa afirmação, um caminho inicial possível é percorrermos o percurso trilhado por Wittgenstein na própria seção cento e cinqüenta e sete (157) das Philosophical Investigations.
            O texto tem início com a descrição de uma situação a ser imaginada pelo leitor. Trata-se de pensar em um cenário onde pessoas (ou outras criaturas) são treinadas como “maquinas de leitura” [3]. Nesse contexto é possível distinguir aqueles capazes de ler e aqueles que ainda não desenvolveram a aptidão. Se tomarmos um aprendiz, que ainda não foi submetido ao treinamento, poderemos perceber que, ao mostrar a ele palavras escritas ele poderá pronunciar sons e ocasionalmente, de forma “acidental”, pronunciará a palavra correta. Estará ele lendo nesse momento? O professor poderá afirmar que não. Por outro lado, após uma série de acertos consecutivos do aprendiz, o tutor poderá então declarar que o pupilo lê. A questão que Wittgenstein nos coloca é: em que momento o aprendiz começou a ler? Teria sido na primeira palavra que pronunciou corretamente? Ou apenas depois de uma seqüência de acertos?
            Nesse momento, o próprio Wittgenstein afirma não ter sentido formular essa pergunta. O ponto é que não se estabeleceu aqui um critério preciso para determinar o momento que marca a separação entre ler e não ler. Dessa maneira parece que a operacionalização própria dessa distinção é marcada por uma fluidez desse instante. Ou seja, a distinção entre ler e não ler parece ser pouco precisa quase que de forma proposital e isso parece ser necessário, ou melhor, a definição precisa do momento parece ser desnecessária no contexto formulado. Dessa maneira, a pergunta perde o sentido, a menos que se formule um critério para tornar possível respondê-la.
            Essa falta de critério apontada não deve ser vista como um problema. Em verdade, diante da presente situação, a indeterminação desse momento parece mesmo ser útil ao próprio processo de aprendizado da leitura, ou ainda parece fazer parte do uso que essa categoria tem na linguagem.
            Se prosseguirmos na leitura do texto, veremos que Wittgenstein propõe mais duas possibilidades de entendimento da palavra “ler” para que faça sentido perguntar sobre “a primeira palavra efetivamente lida”.
            A primeira maneira proposta é usarmos a palavra “ler” para designar uma experiência de transição ou “tradução” de certos sinais escritos para sons pronunciados. Aqui se trata de nos ater ao elemento subjetivo do aprendiz para determinar a capacidade ou não de leitura. Sendo assim a primeira palavra lida seria aquela onde o aprendiz teria tido efetivamente a “sensação de estar lendo”. Nesse caso seria possível apontar essa palavra onde a sensação se manifestou primeiro, mas com base num julgamento privado do próprio aprendiz.
            A segunda maneira proposta nos convida a supor um mecanismo, uma maquina de leitura, que converteria sinais em sons de forma mecânica[4]. Nessa hipótese a maquina iniciaria o processo de leitura apenas depois de ser fisicamente preparada para tal. A máquina precisaria ser conectada e ligada para conseguir iniciar a leitura. Dessa forma seria igualmente possível determinar a primeira palavra lida. Aqui, para determinarmos isso não se trata de recorrer a um elemento subjetivo da máquina, mas a características, de certa maneira, necessárias ao funcionamento da máquina. De toda forma, nessa situação, poderíamos então responder qual a primeira palavra lida, através de uma observação objetiva do funcionamento do aparelho de leitura.
            Até esse ponto, essas duas hipóteses apresentadas por Wittgenstein representam uma importante distinção entre uma concepção subjetiva e uma concepção mecânica do processo de leitura.
            Na primeira hipótese a ciência precisa do momento em que o aprendiz se tornou capaz de ler, seria privativa dele. Para qualquer outro, a pergunta “qual a primeira palavra que o aprendiz leu?” continua sem sentido, se não recorrerem diretamente ao aprendiz para respondê-la. Já na segunda proposição o que vemos é uma concepção absolutamente mecânica do processo de leitura. Por mais que possamos objetivamente responder a pergunta sobre qual a primeira palavra lida, nesse caso é muito difícil aceitarmos que essa concepção mecânica nos seja útil. O próprio Wittgenstein interrompe essa linha de raciocínio e retoma seu pensamento fazendo referência a “máquina de leitura viva” [5].
            O que ocorre aqui é que Wittgenstein busca se afastar de uma concepção mecânica do processo de leitura, em verdade poderíamos mesmo ampliar essa idéia não só para a leitura, mas para a linguagem em si. O homem não é uma maquina, e não pode ser tratado como um mecanismo, sua mente não é operada como máquina e ainda que fosse esse mecanismo não teria o condão de explicar o funcionamento da linguagem. Wittgenstein entende que ler é uma maneira de reagir a sinais escritos de determinadas maneiras. Essa idéia deve ser então vista enquanto um comportamento humano e como tal independe de um mecanismo mental que o oriente. Tanto a leitura quanto a linguagem em si são tratados por Wittgenstein dessa maneira.
            Para entender essa afirmação, podemos tomar outros exemplos que não a palavra “ler”. Pensemos então na palavra “vermelho”  [6]. Como aprendemos a usar essa palavra de maneira correta? Wittgenstein afirma que o uso de “vermelho” de forma adequada nada tem a ver com um processo mental que permita identificar a palavra com a cor correta no cotidiano. Em verdade, não é que os processos mentais não existam, eles apenas não são necessários para explicar como se dá o uso cotidiano dessa palavra (ou da linguagem em geral). De fato, os processos mentais não só não explicam como dificultam o entendimento de como se dá a identificação da palavra “vermelho” com a cor correta.
            Wittgenstein dissolve essa questão levando o desenvolvimento da idéia de processos mentais às ultimas conseqüências. Ele postula então a existência de imagens mentais de cores; de forma que ao mencionar a palavra “vermelho” uma pequena mancha vermelha saltaria à mente do interlocutor permitindo-o assim identificar a palavra pronunciada com a realidade. Nesse caso a pergunta que surge é: como esse interlocutor conseguiria identificar a palavra com a mancha mental da cor correta? É essa pergunta que evidencia tudo. A idéia do processo mental apenas transfere o problema. A mesma dificuldade que existiria de ligar a palavra à cor no mundo fenomênico se mantém quando postulamos a idéia da mancha mental. Nesse caso apenas tiramos o problema do mundo físico e o colocamos na mente.
            Podemos usar ainda outro exemplo para falar da linguagem enquanto comportamento. Pensemos na palavra “dor” [7]. Aqui a pergunta é: como uma palavra pode se referir a uma sensação? Ao nos referirmos a uma cor como o vermelho, temos ao menos um elemento externo que é compartilhado entre os interlocutores[8], mas uma sensação, como a dor parece algo estritamente privado. Uma hipótese sugerida pode ser a de associar a palavra “dor” com a reação primitiva de dor. Não se trata de afirmar que a palavra dor signifique “gritar”. Muito diferente disso, a palavra dor em verdade substitui o grito. A palavra “dor” é assim um novo comportamento de dor.
            Veja que isso não reduz a linguagem à mera significante de comportamentos. Ela é, em verdade, um comportamento por si. Ao tentarmos explicar essas questões nos socorrendo de processos mentais, imagens mentais ou logaritmos da mente, conseguimos freqüentemente apenas tornar a questão ininteligível. Todos esses entes mentais se existem, não são capazes de explicar a problemática do uso da linguagem. A verdade é que ao nos utilizarmos da linguagem no cotidiano não nos ocupamos de formular mentalmente suas regras de uso. Tanto é assim que quando somos indagados a cerca dessas regras é comum que não consigamos explicitá-las ou que enfrentemos significativa dificuldade em formulá-las.[9]
            É preciso que se diga também que não se trata de afirmar que a linguagem não possa fazer referência a processos mentais. Ela o faz a todo tempo. Somos capazes de nos referir à idéia de “mancha mental”, ou a imaginação em geral. Entretanto, esses processos parecem não ter estatuto normativo na produção do sentido da linguagem. A linguagem não é assim produto de um maquinário mental. Se fossemos pensar em termos da separação corpo alma (ou corpo e mente), creio que a linguagem não poderia ser vista como uma produção da alma manifesta no mundo físico. Entendo que a linguagem esteja muito mais relacionada a fenômenos do corpo, no âmbito do comportamento. As eventuais conexões entre corpo e alma ainda são para nós um espectro indeterminado e não acredito podermos tentar resolver esse problema filosófico por meio do funcionamento da linguagem. Ao tentar fazer isso não só não respondemos a questão como ainda dificultamos a compreensão da linguagem em si.
            Acredito que a linguagem possa ser entendida então pelo seu uso, e o aprendizado da linguagem consiste basicamente em aprender a usar a linguagem. Se voltarmos agora para a questão da leitura e do aprendiz, acredito podermos entender o que Wittgenstein quis fazer nessa seção cento e cinqüenta e sete (157) das Philosophical Investigations.
            Trata-se aqui de distanciar a noção do momento impreciso em que o aprendiz começou a ler de um mecanismo mental. A idéia de “maquina de leitura” nos serve para perceber o quão diferente é um instrumento mecânico do funcionamento da palavra “ler” no seu uso na linguagem.
            Ao tratar então a leitura como comportamento Wittgenstein consegue oferecer uma explicação para o próprio funcionamento dessa palavra na linguagem, e mesmo da linguagem em si. Ele “dissolve” então um aparente problema filosófico e aponta para um caminho muito mais simples onde alguns conceitos eventualmente possuem um grau de indeterminação e é isso que permite seu uso e seu sentido na linguagem.
            A pergunta então “qual a primeira palavra que o aprendiz leu?” não faz sentido e, para dotá-la de sentido, os critérios que precisariam ser estabelecidos poderiam macular o próprio uso do termo na linguagem, descaracterizando-o. A linguagem admite o uso de termos dotados de certa imprecisão, e seu uso é viabilizado precisamente por esse grau de inexatidão. Para entender esse fenômeno não precisamos recorres a problemas filosóficos muito mais complexos como ligação entre corpo e alma, nem a entidades que habitem as profundezas da mente. Nesse caso nos basta observar a linguagem em seu próprio uso, em sua própria manifestação enquanto comportamento humano.           

Ivan de Sampaio 

[1] PESSOA, Fernando. Poesia Alberto Caeiro. São Paulo/SP, Companhia das Letras. 1ª Ed. 2001. P. 31.  
[2] “The change when the pupil began to read was a change in his behavior” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63  
[3]“reading-machines”
[4]perhaps as a pianola does” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63
[5]living reading-machine” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63
[6] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. The Blue Book, New York. Harper &Row published. 1rd ed. 1965. P. 03/04
[7] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 89
[8] Aqui, ainda que levantássemos a suspeita de que “o vermelho que ele vê não é o mesmo que eu vejo” isso não romperia com o raciocínio. Independentemente disso, há um vermelho no mundo físico que foi, como que por consenso, denominado dessa forma. Independentemente de como cada um o enxerga, ambos os interlocutores denominam o que vêem de “vermelho”.        
[9] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. The Blue Book, New York. Harper &Row published. 1rd ed. 1965. P. 25

Nenhum comentário:

Postar um comentário