terça-feira, 19 de julho de 2011

O Princípio do Promotor Natural: A Técnica e a Legitimidade da Aristocracia.

Quando nos propomos a discutir o tema do chamado princípio do promotor natural, é bastante comum que a análise se detenha a um mero esforço hermenêutico da legislação pátria para afirmar que o referido princípio tem ou não amparo no ordenamento jurídico.
            Não é isso que pretendo fazer aqui. Acredito que a questão posta passa por outras duas idéias anteriores, que precisam ser exploradas. Refiro-me à questão da legitimidade[1] do Promotor de Justiça, e da concepção técnica de Direito que tem imperado na comunidade jurídica nos últimos tempos.
            Iniciando pela idéia de técnica jurídica, podemos destacar que, de forma simplificada, técnica seria um conjunto de procedimentos que tem por objetivo a obtenção de determinado resultado. Dessa maneira, se a técnica consiste em um “conjunto de meios”; vemos que, ao “transformar” um saber (como o Direito) em uma técnica, o que se procede é uma separação entre meios e fins, onde, os meios pertencem ao domínio técnico.
            Assim, podemos afirmar que na contemporaneidade o operador do Direito, dentro dessa concepção técnica-jurídica, deve dominar um conjunto de procedimentos e colocá-los em movimento, sem ter que dominar ou se preocupar com a finalidade de suas práticas. Trata-se de um agente reprodutor da técnica.
            Nesse contexto o Promotor de Justiça, como operador do Direito, não apresenta nenhuma diferença no atinente a suas práticas. Ele também é designado para a aplicação de uma técnica de forma a reproduzir procedimentos estritamente técnicos.
            É precisamente essa formulação do saber jurídico que permite que a legitimidade de um Promotor de Justiça provenha da aprovação em um concurso público. Se assim não fosse, se entendêssemos que o agente do Ministério Público seria competente para fazer escolhas atinentes a finalidades da técnica estaríamos diante de um exercício de poder político legitimado por uma escolha meritocrática, ou seja, de uma relação de poder fundada em concepção aristocrática[2] onde os “melhores” (escolhidos pelo concurso) exerceriam parcela do poder político do Estado. 
            Como do ponto de vista formal, o Estado brasileiro se funda em bases democráticas, não se pode designar atributos estatais políticos para uma aristocracia dos concursos públicos. Dessa forma, somos forçados a limitar a práxis do Promotor de Justiça a uma atuação técnica isenta de julgamentos políticos pessoais, mas apenas orientados pela técnica jurídica.
            Dentro desse contexto acredito podermos discutir o significado do princípio do promotor natural. Esse princípio pode ser colocado lado a lado das demais garantias que nosso ordenamento jurídico pátrio concede aos membros do Ministério Público. Essas garantias existem não para proteger o promotor, mas sim, para tutelar o exercício de sua função.
            Visto por esse ângulo já excluímos do âmbito de proteção do princípio a idéia de liberdade de consciência do promotor. Certamente, como decorrência da própria dignidade da pessoa humana, o Estado não pode obrigar o agente público a ir contra sua consciência, mas isso não pode também significar uma ruptura com a aplicação técnica do Direito. Sendo assim, nada impede que o Ministério Público designe outro agente para realizar tarefa recusada pelo primeiro por motivo de consciência.
            O princípio do promotor natural também não deve ser visto como meio de impedir a formulação de eventuais núcleos especializados do Ministério Público, nem de entendimentos institucionais do órgão. Em ambos os casos, tratam-se de formulações gerais que modificam eventualmente a competência interna do promotor, ou tentam uniformizar a atuação do órgão de acordo com uma perspectiva técnica (nesse caso a liberdade de consciência novamente poderia ser invocada, lembrando apena tratar-se de proteção do agente público que não impede a atuação do órgão em si).
            Dito isso, qual seria então o âmbito de aplicação do princípio ora discutido? Entendo que o princípio do promotor natural deve ser levantado apenas quando se trata da tutela da função específica do promotor. Sendo assim, um promotor não poderia, por exemplo, ser afastado de um determinado processo por pura vontade institucional do órgão. Também não poderia haver a substituição do promotor em um caso onde o Ministério Público formulasse um núcleo especial apenas para aquele caso. Essas determinações que modificam a competência dos promotores deve sempre ser de caráter geral e nunca objetiva uma demanda particular.
            Tudo isso busca tutelar a isenção técnica da qual falei, bem como o fortalecimento das finalidades institucionais do Ministério Público. Dessa forma, é preciso que exista o referido princípio, mas ao mesmo tempo ele deve ter sua aplicação restrita à tutela dessa visão técnica.
            Diante desse quadro, o Promotor de Justiça deve então ser visto como um agente reprodutor de uma técnica jurídica, onde não lhe cabe formulações para além dessa técnica. O princípio do promotor natural serve então para tutelar a boa reprodução técnica do Direito e não o promotor ou a chamada liberdade de consciência do agente do parquet.    
            Toda essa formulação, entretanto, é um esforço para tentar estabelecer certa coerência sistêmica entre: a atuação do Promotor de Justiça, sua legitimidade e o ordenamento jurídico pátrio. Sendo assim, devemos ainda destacar algumas críticas possíveis de serem feitas a esse raciocínio sinteticamente explicado até agora.
            Primeiro, a idéia de tentar reduzir o Direito a uma técnica que se pode reproduzir quase que de forma mecânica destoa profundamente da realidade de sua aplicação. O Promotor de Justiça exerce sim parte do poder do Estado ele não é mero reprodutor de uma técnica e faz juízos e escolhas cotidianamente tomando por base uma legitimidade com fundo aristocrático. Ou seja, trata-se de uma situação extremamente dúbia, onde a idéia de Direito enquanto técnica atribui uma legitimidade para que o promotor atue - vez que ele é o ente que melhor conhece essa técnica - mas sua atuação se da no âmbito político. Ou seja, o saber técnico concede ao agente uma legitimidade política.
            É preciso que se diga que mesmo nos casos de pura reprodução do Direito enquanto técnica, mesmo ai jaz uma escolha profundamente política que foi atribuída ao agente por certo domínio de um saber. Nada mais aristocrático que isso.
            É preciso também destacar que a própria idéia de tratar o Direito enquanto técnica traz em si uma série de problemas ainda de maior gravidade. Primeiro, fazer essa distinção entre meios e fins é um caminho aberto para que os agentes que promovem os procedimentos (os meios) consigam se desligar completamente dos fins a que servem esses meios.
            No fundo o que terminaria se concretizando ao levarmos a fundo essa idéia de técnica jurídica seria que os operadores do Direito (in casu os Promotores de Justiça) não mais seriam capazes de reconhecer o produto de seu trabalho. Eles se veriam de tal forma presos a reprodução de uma técnica que perderiam de vista o que de fato tem sido construído com sua prática. Isso é precisamente a definição de “estranhamento” [3].
            Esse “estranhamento” do promotor em relação aos fins de sua atuação findaria por gerar verdadeira “alienação” [4] do membro do parquet no interior da reprodução da técnica. Ele se tornaria um agente incapaz de pensar fora dos padrões estritamente determinados pelo conjunto dos saberes técnico-jurídicos.
            Por fim chegar-se-ia o momento onde se perderia qualquer ligação entre as atividades meio e os fins dessa prática. Nesse contexto o próprio agente reprodutor da técnica transformaria sua práxis em uma atividade profundamente “desumana”. A prática jurídica perderia sua ligação com as suas finalidades primeiras e buscaria a sua pura segurança. Nesse contexto a segurança jurídica se limitaria a ser a segurança do ordenamento (conforme o modelo hegeliano) e essa técnica buscaria apenas a sua preservação enquanto técnica.
            Nesse meio, a alienação dos agentes atingiria seu máximo e eles já não seriam capazes de ver qualquer ligação entre suas ações e os resultados delas no mundo. A isso podemos usar o título de “banalização do mau” [5] categoria atribuída por Hannah Arendt aos agentes do Estado totalitário que não eram capazes de ver os males do totalitarismo como proveniente de suas ações. No fundo o domínio da técnica nada mais é do que a ditadura do procedimento, a doutrina do pensamento único.       
            Acredito que atualmente ainda não podemos afirmar que vivemos nesse domínio totalitário da técnica, o que acontece é que essa teoria tem sido usada de forma a traçar os contornos dessa realidade que é ainda envergonhada.
            Dentro então do estado de coisas contemporâneo acredito que muito do fazer jurídico tenha se reduzido a uma técnica alienante, mas parte desse discurso técnico se dá muito mais para se manter determinado fazer político, como se não se tratasse de escolha política, mas como meras ações decorrentes dessa técnica. Acredito que a idéia de princípio do promotor natural possa se encaixar como um desses recursos.
            Tratar-se-ia assim de um princípio que no fundo busca dar segurança para que o Promotor de Justiça possa fazer juízos profundamente políticos e não sofra retaliações, seja de meio externo, seja por vezes da própria instituição. Nesse caso, o princípio se voltaria para tutelar da liberdade de consciência do agente do parquet, que esconderia suas posições políticas atrás de uma legitimidade pretensamente técnica.   

Ivan Sampaio


P.s: Ainda sobre o Ministério Público recomendo a leitura da seguinte postagem no blog Sem Juízo do Juiz de Direito de São Paulo Marcelo Semer.   

[1] Uso legitimidade aqui no sentido amplo e sociológico e não no sentido estritamente jurídico.
[2] Aristocracia: (do grego αριστοκρατία, de άριστος (aristos), melhores; e κράτος (kratos), poder, Estado) literalmente governo do melhores. Aristóteles chegou mesmo a afirmar que a aristocracia é o poder confiado aos melhores cidadãos, sem distinções de nascimento ou riqueza. Já em Platão, o termo aristocracia se funda na virtude e na sabedoria. Caberia, portanto, aos sábios, aos melhores, enfim, dirigir o Estado no rumo do bom e belo.  
[3] MARX, Karl. A Ideologia Alemã. Editora Boitempo 1ª edição. São Paulo/SP. 2007.    
[4] Ibidem     
[5] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Editora Companhia das Letras 1ª edição. São Paulo/SP. 2007.  

2 comentários:

  1. Caramba! Achei que você tinha desistido do blog!

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  2. Pois é Taquaral. Fiquei mesmo um bom tempo sem postar nada e agora estou fazendo postagens ainda esporádicas. Só espero terminar minha monografia do Direito para poder retomar o blog com um periodicidade ao menos semanal.

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