Depois
de longos meses de abandono retomo os escritos nesse blog. Hoje publico então
esse pequeno texto que escrevi ainda no ano passado como parte da avaliação de
uma disciplina que cursei na graduação em Filosofia na FFLCH/USP ministrada
pelo Professor Dr. Eduardo Brandão. Sem mais, segue o texto.
A emergência do sujeito e a liberdade:
Heidegger e
Sartre
O marco inicial da modernidade está
no pensamento de Descartes. Ao menos é assim que afirma Heidegger. Nessa
leitura que o filósofo alemão faz de R. Descartes, o que tem relevante destaque
e que caracteriza precisamente o pensamento moderno é a emergência do sujeito.
Não um sujeito que simplesmente funda a cisão entre objeto e sujeito, mas um
ente que pode pela representação se “assenhorar” do mundo.
Antes de Descartes é como se o
“ente” subjazesse por si mesmo. “Todo ente, na medida em que é um ente, é
concebido como sub-iectum.” [1].
Dito de forma mais abrangente, e talvez um tanto hegeliana, antes da metafísica
moderna é como se o “ser ai” do mundo não precisasse do homem para existir.
O que acontece na modernidade é que
o homem (o sujeito) passará a ser o destinatário de toda representação. O mundo
passará a existir (ou ao menos terá sua existência mediada) pela representação.
O homem será assim, ao mesmo tempo, o destinatário e o meio pelo qual a
representação é construída, por vezes ele poderá ser mesmo o conteúdo
representado. É diante disso que esse homem, esse sujeito precisará, antes de
tudo, ser assegurado.
O cogito cartesiano é visto então por Heidegger como o meio para
estabelecer os critérios da verdade, e a verdade mesma passa agora a ser
reduzida à certeza. “O ‘novo’ da determinação da essência da verdade consiste
no fato de a verdade ser agora certeza.” [2]
Mas, é preciso destacar que a leitura que Heidegger faz do cogitare cartesiano é que possibilitará essa ideia de verdade
enquanto certeza, e mais do que isso, ao ler o cogitare de Descartes não apenas enquanto pensar, mas enquanto
representar, Heidegger pode começar a falar efetivamente em um “assenhoramento”
do mundo pelo homem.
O filósofo alemão nos afirma que
“o cogitare é um apresentar para si aquilo
que é re-presentável.” [3],
mais do que isso, “algo só é apresentado – cogitatum
– para o homem, quando é fixado e assegurado para ele como aquilo sobre o que
ele pode ser senhor a partir de si” [4].
Mas o que exatamente é assegurado por meio da representação? Podemos perceber
no ato de representar uma tentativa de objetivação do mundo pelo homem, por
meio da qual esse sujeito se torna senhor do mundo. Mas a questão é que a
representação é antes uma forma de o homem se assegurar de si mesmo.
Para Heidegger, “todo re-presentar
humano é um representar-‘se’” [5].
Não se trata aqui de simplesmente colocar o homem enquanto objeto de si.
Trata-se sim de perceber que o homem que representa é co-representado para si,
sem que se torne propriamente objeto nesse ato. É através dessa leitura que se
torna possível ver a sentença de Descartes “cogito
é cogito me cogitare” como “a
consciência humana é essencialmente consciência de si.”[6]
È essa consciência de si que tem
caráter de certeza necessária e concomitante ao ato de representar para a
afirmação de toda verdade na modernidade.
“Pois,
na re-presentação humana de um objeto, aquilo ‘em contraposição ao que’ ele é
posicionado, a saber, aquele que re-presenta, já está a-presentado por meio
desse objeto enquanto um objeto que
se encontra contraposto e re-presentado, de modo que o homem pode dizer ‘eu’
por força dessa apresentação para si mesmo como aquele que re-presenta.” [7]
Nesse sentido, encontra-se
assegurada a representação, bem como o sujeito que representa. É assim que
Heidegger pode afirmar que o “eu sou” não é deduzido primeiro do “eu
represento”. O que acontece é que o “eu represento” é, “segundo a sua essência,
aquilo que já me apresentou o ‘eu sou’.” [8]
A partir desse “asseguramento”, da
certeza do cogito sum, está então
determinada a “essência de todo conhecimento e de tudo passível de ser
conhecido, isto é a essência da mathesis”[9].
A partir disso a natureza, o mundo passa a ser visto como res extensa, como dependente do sujeito, como servo desse sujeito
moderno.
O que ocorre assim na modernidade, é
que o homem, enquanto sujeito, se “assenhora” do “ente”, bem como de si mesmo.
Subjetivamente, o homem expande sua liberdade, e nesse âmbito não limites para
o homem. Heidegger, falando na linguagem de Kant afirma que “a nova liberdade
[liberdade moderna] consiste no fato de o homem fornecer a lei a si mesmo, de
ele escolher o imperativo e se ligar a ele” [10].
É o “assenhoramento” do mundo pelo homem através da emergência do sujeito
moderno que permite essa “abertura para multiplicidade daquilo que no futuro
pode ser posicionado pelo próprio homem lucidamente como algo necessário e
imperativo.”[11]
Nesse ponto, acredito ser possível
nos voltarmos ao existencialismo de J-P. Sartre e observar como ele constrói,
de forma similar a Heidegger, a sua ideia de subjetividade e como isso
repercute também em uma concepção similar de liberdade humana. O
existencialismo parte então da anterioridade da existência em relação à
essência.
“há pelo menos
um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de
poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz
Heidegger, a realidade humana” [12].
O ponto de Sartre é que “não há
natureza humana, visto que não há Deus para a conceber”[13]
previamente. De forma bastante sintética, podemos reconstruir o percurso até
essa assertiva do existencialismo sartriano em termos similares a leitura que
já fizemos de Heidegger.
A partir de Descartes Deus vai perdendo lugar
na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade e emerge o cogito cartesiano,
a verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo
e não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da
representação. Ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[14],
assegura a si mesmo enquanto aquele que é.
Assim, é possível afirmar que o
existencialismo colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas
como o ponto central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto
posterior a sua existência, ao homem passa a ser atribuída a capacidade de
formular sua própria essência, sua própria natureza, seu próprio conceito.
Dessa maneira, a partir de Sartre,
não faz mais sentido tentarmos explicar o homem por sua natureza, pois o que se
entende por natureza humana é uma construção do próprio homem. Para Sartre o existencialismo seria o
ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas como ele concebe, mas como
ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”[15].
A isso Sartre chama
subjetividade.
Sartre nos afirma assim que “o
primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele
é e de lhe atribuir a total responsabilidade de sua existência.”[16] Aqui chegamos a ideia de liberdade do homem.
A questão é que, ao conceber a existência como anterior a essência e atribuir à
vontade do homem a responsabilidade pelo projeto do seu “vir a ser”, Sartre
nada mais está afirmado do que a liberdade desse homem na própria constituição
de sua subjetividade, e por extensão na construção do mundo como um todo. Nesse
sentido, poderíamos afirmar, que “o único dogma do existencialismo é a
afirmação da liberdade do homem” [17].
Dessa maneira, é preciso ver que há
uma aproximação entre a ideia de subjetividade em Sartre e em Heidegger, bem
como que em ambos, a emergência do sujeito enquanto senhor do mundo repercute
em uma concepção de liberdade do homem. Em Sartre, por sua vez, essa liberdade
é assim acompanhada de uma responsabilidade e é diante dessa potência infinita
do homem que podemos começar a perceber o peso da responsabilidade que Sartre
nos fala. “Sou responsável por mim e por todos, crio uma certa imagem do homem
por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem.”[18].
Nesse contexto o homem é livre e por ser livre se torna também angustia.
“Tudo passa como se, para todo
homem, toda humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz e se regulasse
pelo que ele faz.” [19]
A pergunta que surge é: será que tenho eu o direito de tomar essa decisão sobre
mim e sobre o mundo? Essa é a pergunta da angustia, a pergunta que evidencia a
tomada de consciência do peso das responsabilidades por sermos livres, por
podermos escolher nós mesmos e o mundo. Essa angustia não nos leva ao
quietismo, ela não nos impede de agir. Em verdade essa angustia é a condição
mesma de nossa ação. Agimos por que somos livres para tal. É a angustia que
pode nos apontar o peso da responsabilidade que carregamos, e é essa
responsabilidade que nos assegura sermos livres.
[1]
HEIDGGER, Martin. Nietzsche (Vol.
II). Editora Forense
Universitária. São Paulo/SP. 2007. P. 104.
[2] Ibidem. P. 110.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem. P. 113.
[6] Ibidem. P. 115.
[8] Ibidem.
[11] Ibidem.
[12] SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo in Os
Pensadores. Editora Abril Cultural. São Paulo/SP. 1978. P. 06.
[13] Ibidem.
[14] Em Descartes Deus ainda perece
como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua
alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue
a Deus para explicar a relação corpo/alma, Deus aparece já de forma indireta. A
verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação
verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.
[15]
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit. P. 06.
[16]
Ibidem .
[17] PERDIGÃO, Paulo. Existência
e Liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Editora L&PM. Porto
Alegre/RS. 1995. P. 22.
[19] Ibidem. P. 08.
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