Texto de
apresentação da monografia de conclusão de curso
Proferido
na banca do prêmio de “menção honrosa em monografia jurídica”
no dia 08 de
dezembro de 2011.
Banca:
Prof. Orientador MárcioAlves da Fonseca e Prof. Jonnefer Francisco Barbosa
Introdução
Nesse trabalho busquei,
de certa forma, sistematizar algumas imagens sobre o Estado e os fundamentos do
direito positivo que construí ao longo do curso de graduação em direito. Penso
então nesse trabalho como o retratar de um percurso, não um caminho como os
caminhos na floresta de Heidegger, mas um percurso como o percorrido por Joseph
K. nos intrincados corredores do tribunal. No início, parece apenas um caminhar
em ambiente claustrofóbico onde se retira das luzes da lei a própria escuridão
das vielas da burocracia. Mas, o que foi possível perceber, e espero ser capaz
de mostrar aqui, é que todo esse imponente edifício jurídico nada mais é do que
o biombo que oculta os pudores do poder.
Dito de forma bem geral, o que busquei fazer foi traçar
duas linhas críticas relativamente àquilo que a filosofia política intitula de
“teoria da soberania” ou “teoria jurídica da soberania”.
Capítulo I:
Teoria da Soberania
No primeiro capítulo de desenvolvimento, fiz uma breve
síntese dos contornos gerais da idéia de soberania. Não vou aqui resumir todo
esse capítulo, mas, para essa exposição acho que nos basta destacar que parti
do pensamento de Maquiavel, onde julgo que encontramos a primeira formulação
mais completa da soberania, e, em seguida, abordei algumas idéias pontuais de
três contratualistas (T. Hobbes, J. Locke e J-J. Rousseau).
O que busquei mostrar com o estudo desses filósofos
chamados contratualistas, é que a preocupação central em todos eles é a mesma.
Na modernidade, parece que o grande problema filosófico-político passa a ser a
questão da legitimidade do poder soberano. Do mesmo modo, o direito parece ser
construído também no âmago dessa problemática. A teoria da soberania e o
direito que nela se fundamenta são então, preponderantemente, formulados em
torno do problema moderno da legitimidade do poder.
Capítulo II: O
Ordenamento Jurídico Simbólico
Dediquei o segundo capítulo de desenvolvimento do
trabalho ao estudo da legislação e da constitucionalização simbólicas. A
pretensão foi apontar o significado de uma norma jurídica ineficaz do ponto de
vista normativo no interior do sistema jurídico.
Iniciei por um estudo da legislação simbólica. De forma
bastante sintética poderíamos defini-la como sendo aquela que carece de efeitos
normativos e cuja referencia textual é normativo-jurídica, mas serve antes para
finalidades políticas. Esse efeito
simbólico é sempre manifesto no âmbito do predomínio. Toda lei produz efeitos
no âmbito do simbólico, a particularidade aqui é que esses efeitos simbólicos
tendem a supressão da eficácia normativa da legislação.
Após a propositura e análise de uma tipologia para as
normas simbólicas conforme o pensamento de Marcelo Neves foi possível destacar
a preservação da ordem como a marca predominante do efeito simbólico positivo
das normas.
Mencionarei brevemente apenas um desses tipos de
legislação simbólica que explorei e que julgo o mais importante para o presente
trabalho, refiro-me a legislação álibi.
A legislação álibi seria aquela que teria como função dar
uma resposta a algum anseio imediato da população. O objetivo aqui é
descarregar a pressão política da população e expor o Estado como sensível a
suas demandas. Vejam que, pouco importa se a lei tem ou não condições de
efetivamente suprir as demandas que a motivou. Em verdade, trata-se mesmo de
dar uma aparência de solução ao problema e com isso, inclusive impedir o
caminho para qualquer outra medida que poderia ser efetiva.
Um exemplo que podemos mencionar no caso da nossa
legislação pode ser a lei de crimes
hediondos (lei 8.072/90). Essa lei foi aprovada pelo congresso nacional em
resposta da escalada da criminalidade carioca, poucos anos depois, em 1994,
essa mesma lei foi ainda emendada pela primeira lei proveniente da iniciativa
popular na história do Brasil. O motivo dessa emenda foi o assassinato a filha
da atriz global Glória Perez.
Agora, o interessante dessa lei de crimes hediondos é que ela versa preponderantemente sobre
regimes de cumprimento de penas, ou seja, ela não tipificou novas condutas como
crime, nem disciplinou meios mais eficientes de apuração de delitos. Veja que
essa legislação não tinha a menor capacidade para combater a criminalidade, ela
apenas agravou a penalidade de condutas que já eram crimes. Tanto o foi que a
promulgação da lei em 1990 e de sua emenda em 1994 não tiveram qualquer impacto
nas estatísticas de cometimento dos crimes. A edição da lei era, em verdade,
mera resposta legislativa para reavivar a confiança popular na atuação estatal.
No fundo a legislação álibi serve então de “meio de
exposição simbólica das instituições” [1].
O Estado vem se mostrar como ente seguro e digno de confiança. A questão é que
essa medida “não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso obstrui
o caminho para que sejam resolvidos.”[2]
a marca [da legislação simbólica] parece ser sempre
uma busca por manutenção, por estabilidade, por perenidade. Nesse sentido, me
parece que o grande efeito simbólico manifesto é a conservação de uma
determinada ordem.”
(P. 40/41)
Depois de feita essa análise inicial dos efeitos
simbólicos da legislação, passei ao exame do simbólico no atinente ao núcleo do
sistema jurídico, a Constituição.
A partir do estabelecimento da Constituição como doadora
de sentido e validade para todo o direito positivo, foi possível observar os
efeitos simbólicos manifestos no topo da pirâmide da hierarquia das normas.
Nesse sentido, percebeu-se que a carência de normatividade no núcleo do sistema
jurídico aponta para a falência do próprio direito positivo enquanto
instrumento normativo.
Ao perceber a Constituição enquanto símbolo, podemos
apontar para a falência das regras próprias que supostamente conduzem o
exercício da soberania. Quando a Constituição parece não se concretizar no
mundo fenomênico, denota-se que esse texto não tem a capacidade de regrar
efetivamente as ações do Estado.
No âmbito dos efeitos positivos da Constituição enquanto
símbolo, salientei que a positivação do direito parece funcionar mais para
evitar a concretização do conteúdo de seus textos do que para garantir sua
efetiva aplicação. Trata-se de uma função álibi do próprio processo de
positivação e do direito positivo como um todo.
Da constitucionalização simbólica
“não
decorre nenhuma modificação real no processo de poder. No mínimo, há um
adiamento retórico da realização do modelo constitucional para um futuro
remoto, como se esta fosse possível sem transformações radicais nas relações de
poder e na estrutura social”.
Como conclusão desse capítulo, mencionei a percepção de
um Estado não jurídico, cujas práticas não se orientam pelos ditames
constitucionais ou legais. A ordem jurídica parece funcionar mais como mera
mantenedora do Estado e de sua própria reprodução enquanto ordem discursiva ao
invés de agir como limite ou como meio de conduzir as ações estatais.
Capítulo III:
Por uma anti-teoria do Estado
No terceiro e último capítulo de desenvolvimento do
trabalho, o esforço teórico se construiu em torno de uma questão: se o direito
positivo não regra a sociedade conforme seus ditames e atua preponderantemente
enquanto preservação de uma ordem, o que afinal regra a sociedade e que ordem é
essa que parece operar fora do âmbito do discurso jurídico da soberania?
Primeiramente, me afastei de uma análise ontológica do
poder. O objetivo da análise nesse capítulo foi observar o poder não como uma
substancia ou enquanto um ontos. Dessa maneira, o poder não pode ser
possuído nem colocado em um local, classe ou ente. Não há aqueles que detêm o
poder e aqueles que não detêm. O poder se exerce, não possui uma natureza, mas
é antes um conjunto de mecanismos que opera que se manifesta no bojo das
relações sociais. Nesse sentido, o que se busquei fazer nesse capítulo foi
tratar da genealogia dessas relações de poder, partindo de suas manifestações
mais capilares até as organizações mais gerais das estratégias de poder.
Em seguida, por meio também das análises de M. Foucault
em seu curso ministrado no Collège de France em 1976 (Em Defesa da
Sociedade), inverti a análise contratualista sobre a formação do Estado.
Foucault busca fugir da formulação de Clausewitz e, ao invés de tratar a guerra
como a política praticada por outras vias, afirma antes que “a política é a
guerra continuada por outros meios”.
Por meio dos discursos analisados por Foucault sobre essa
forma de ver a política, foi possível destacar duas críticas à teoria da
soberania. Primeiro, os teóricos contratualistas, em especial T. Hobbes, não
são teóricos da guerra. Esses filósofos além de descreverem uma guerra que não
vai além do plano da representação são antes idealizadores da paz. O pacto
hobbesiano coloca fim a guerra, institui a paz. Em segundo lugar, quando se
afirma que a soberania coloca termo a guerra, o grande efeito dessa afirmação é
antes esconder em baixo dos tecidos alvos da paz a vermelhidão da guerra.
“A
lei não nasce da natureza, junto das fontes freqüentadas pelos primeiros
pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das
conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades
incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que
agonizam no dia que está amanhecendo.” [3]
A questão é que
isso não significa que o nascimento do Estado tenha representado o armistício
das forças em confronto. “A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra
continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os
mais regulares.” [4]
“O que propomos aqui é justamente perceber que por
baixo das cedas alvas da ordem, o caos permanece, a lama permanece, o
enfrentamento permanece, a guerra permanece.” (P. 67)
No fundo, esses discursos que afirma a instituição da
paz, apenas colocam a guerra em outros termos de forma a garantir que
determinados grupos que haviam conquistado uma “vitória” circunstancial possam,
por meio da instituição de uma ordem, não mais colocar seus privilégios em jogo
nas disputas de poder. Trata-se de regrar a guerra em benefício de determinados
interesses, de colocá-la em termos que beneficiam um dos lados do
conflito.
Depois dessa análise, busquei reconstruir as formulações
foucaultinas a respeito da idéia de governo. Foram deixadas um pouco de lado as
relações de dominação e debrucei-me com mais atenção no poder que conduz.
Uma vez que o discurso da soberania, pelas análises de
Foucault, se mostrara mero meio para ocultar a guerra perpétua da sociedade; os
estudos da genealogia do governo emergem justamente para apontar como, dentro
das relações belicosas de poder, é possível que exista um poder que conduz os
corpos e que pode gerir as populações.
Desse ponto, o que quero destacar é que podemos
depreender dois modelos daquilo que Foucault chama de normalização. A
normalização disciplinar e a normalização da segurança ou do biopoder. A
normalização disciplinar ou “normação” trata de partir de um padrão de
normalidade prévio e buscar moldar os corpos a essa norma. Ela busca desenvolver
métodos de classificação, de vigilância e de adestramento. Opera enquanto uma
tecnologia de poder que produz comportamentos muito mais do que reprime. Por
fim ela permite que se estabeleça uma divisão entre os aptos e não aptos, entre
os normais e os anormais. O esforço na disciplina será então de “normação” de
transformar tudo (as pessoas, os gestos, os atos, os pensamentos) segundo seu
padrão de normalidade. De forma geral, vemos essa forma de normalização nos
âmbitos intra institucionais (presídios, escolas, hospitais, etc.).
Já a normalização no âmbito da segurança não estabelece
previamente esse padrão de normalidade. Aqui primeiro se apreende a curva
normal de fenômenos sobre os quais se pretende intervir. Qual é a taxa média de
contaminação da população por determinada doença? Quantos crimes são cometidos
em média por ano nessa cidade? etc. A
partir daqui é que se pode buscar minorar os fenômenos negativos e majorar os
positivos. Essa normalização então investe, atua sobre índices de normalidade.
Já não se trata de uma divisão entre normal e anormal, mas sim de estabelecer
parâmetros de tolerabilidade, de “desejabilidade” dos fenômenos. Podemos chamar
essa forma de intervenção nos domínios da vida da população de “biopoder”.
Pois bem, o que quero destacar de tudo isso é que, me
parece que aquilo que entendemos por governo esta mais ligado a essa idéia de
disciplina e de biopoder do que aos discursos da soberania jurídica.
Dessa maneira, desenvolvi ainda nesse trabalho, por meio
dos estudos dos cursos de Foucault no Collège de France em 1978 (Segurança,
Território, População) e 1979 (Nascimento da Biopolítica) uma teoria
do governo. Procurei mostrar como as práticas de governo, originárias em grande
parte da pastoral cristã no medievo, pouco a pouco se secularizaram e se
“entificaram” no Estado.
A idéia de governo parece surgir, ou ser inspirada no
chamado Regimen Animarum (Governo das
Almas). Da mesma forma que o clérigo cristão deveria conduzir à salvação das
almas, pouco a pouco foi se atribuindo ao soberano o dever de conduzir à
salvação dos corpos e da cidade. Ocorre que, a autoridade desse soberano, ou o Regnum, era visto como meio para
possibilitar que ele cumprisse essa função. Maquiavel parece inverter e mesmo
confundir essa distinção entre o Regimen
e o Regnum, entre o governo dos
corpos e a autoridade do soberano. O governo em Maquiavel parece ser colocado a
serviço da manutenção da autoridade. Já na modernidade o tema do governo é
retomado, ele reaparece como se fosse agora função do Estado. Dessa forma,
enquanto o Estado gira e torno dos discursos da soberania, o governo pode ser
tratado em outros termos. É assim que o governo parece guardar relação muito
maior com a lógica da economia política, com a lógica de custo benefício, com
as práticas de disciplina e de biopoder do que propriamente com a lógica da
legitimidade soberana.
Veja então que, ao contrário de o Estado produzir um
governo, o governo aparece como sendo anterior mesmo ao Estado. De certa forma
o que vemos foi um processo em que a práticas de governo parecem ter se
“entificado” no Estado, mas de forma a se manter fora da lógica dos discursos
da soberania. O que parece ter acontecido foi, como diria Foucault, uma
“governamentlização” do Estado.
Dessa forma, o que pude destacar é que a “normação”
disciplinar bem como a normalização do biopoder são as duas formas efetivas de
exercício de poder ocultadas pelos discursos jurídicos da teoria da soberania.
As práticas efetivas de governo não cabem na dicotomia da lei
permitido-proibido. A população parece não poder ser gerida nesses termos. É
preciso entender a ordem que opera nos processos de domesticação dos corpos e
de gerência dos fenômenos quantificados pela incerteza da probabilidade. Nesse
sentido a lógica a que se reporta a essas formas de poder parece ser antes a da
economia, a da relação custo benefício e não a da dicotomia legal ilegal.
É nesse sentido que podemos ver mesmo o cumprimento e o
descumprimento das normas legais ou constitucionais. O Estado não faz ou deixa
de fazer isso por que é ilegal ou legal. Agora que parece que orienta sim as
condutas do Estado são os custos, qual é o custo (custo aqui entendido no
sentido largo do termo, curso econômico, político, social, etc...). Qual é o
custo do cumprimento da lei, e de seu descumprimento? Essa parece ser mais a
pergunta que orienta o exercício do poder do Estado e das práticas de governo. Nesse
contexto o simbólico poderia ser visto como meio mesmo de lidar com esses
custos políticos em torno do discurso jurídico.
Conclusão
Dessa maneira, a soberania parece funcionar enquanto um
discurso tautológico que opera apenas enquanto símbolo que oculta as entranhas
do poder.
É por meio da soberania que a sociedade contemporânea
retira da democracia das formalidades do Estado sua servidão às práticas de
governo. A soberania usa assim, as luzes da democracia para ofuscar a percepção
e ocultar a submissão ao biopoder e à disciplina, para ocultar à lógica
econômica da gestão da vida.
“É preciso falar constantemente da democracia e
seus princípios, para que não se torne perceptível que suas formas não dizem
respeito à efetividade do poder. É necessário que se afirme, dia após dia, a
supremacia da Constituição, para que não se perceba a lógica econômica real da
governamentalidade. É imprescindível que a paz seja cotidianamente louvada para
que a guerra continue silenciosa. O Estado busca, constantemente, afirmar sua
legitimidade, para que o governo permaneça fora desses parâmetros. O direito
precisa ser continuamente assegurado, para que nenhum outro discurso de poder
possa emergir das profundezas das instituições ou da multiplicidade da
população.” (P. 93)
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