sábado, 22 de dezembro de 2012

A Devoradora de Homens: breve análise da fábrica moderna a partir de Marx


Esse breve texto foi redigido inicialmente como resposta a uma questão proposta pela Profa. Marilena Chaui em seu Curso de Filosofia Geral II intitulado: Da Técnica à Tecnologia, ministrado no 2º semestre de 2012 na FFLCH/USP.  A questão proposta foi a seguinte: “Durante a revolução industrial do século XIX, considerou-se que as fontes de energia eram responsáveis pelas mudanças na técnica. Marx, porém, refutou essa ideia. Como e por quê?”.  

  
A Devoradora de Homens:
Breve análise da fábrica moderna a partir de Marx.
  
“Surge, então, em lugar da máquina isolada, um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho.” [1]

“Deixai toda esperança, ó vós que entrais.” [2]


            A revolução industrial, de acordo com Marx, fez emergir da coesão e encadeamento das máquinas isoladas um colossal organismo produtivo. É preciso, entretanto, se atentar para a inversão que comumente é feita; ao contrário de o alimento ter produzido o monstro, parece ter sido o parto do monstro que passou a demandar o alimento.
            Nesse brevíssimo estudo, o que se pretende é mostrar, a partir da leitura fundamentalmente do capítulo XIII de O Capital[3] do Marx, como e porque a grande mudança técnica da revolução industrial do século XVIII não foi causada pela descoberta de novas fontes de energia[4], mas foi antes a causa da emergência delas.
“A própria máquina a vapor, na forma em que foi inventada no fim do século XVII, durante o período manufatureiro, e em que substituiu até o começo da década dos 80 do século XVIII, não provocou nenhuma revolução industrial.” [5]    
            O pensador alemão identifica precisamente na parte da máquina por ele denominada de “maquina-ferramenta” o ponto de partida da revolução industrial do sec. XVIII. “É dessa parte da máquina, a máquina-ferramenta, que parte a revolução industrial do século XVIII”[6]. O motivo disso, prima facie, vem da própria função que essa parte da máquina desempenha.
            Quando na primeira metade do séc. XVIII John Wyatt anunciou suas máquinas de fiar, ele não tinha enfoque na força motriz que movia suas maquinas. Ao contrário, a grande inovação anunciada era precisamente a capacidade de “fiar sem os dedos”. Desse modo, o marco primeiro da revolução industrial pode ser visto na substituição de uma tarefa produtiva bastante específica; a saber: o trabalho humano. É importante destacar que não se trata aqui de qualquer trabalho humano. Nas primeiras maquinas de fiar, por exemplo, o homem continua tendo seu local, mas agora longe de sua atividade está vinculada ao ato de fiar (uma atividade técnica), seu papel foi transformado, ou rebaixado, para a atividade de impulsionar a máquina que fia. Nas palavras de Marx:
“A máquina-ferramenta é, portanto, um mecanismo que, ao lhe ser transmitido o movimento apropriado, realiza com suas ferramentas as mesmas operações que eram antes realizadas pelo trabalhador com ferramentas semelhantes. Provenha a força motriz do homem ou de outra máquina, a coisa não muda em sua essência.”[7]            
            Pois bem, é depois então dessa primeira substituição, onde o trabalho humano já não produz propriamente o “produto final”, que é possível perceber um segundo movimento. Agora sim, atinente à força motriz das máquinas. Nesse segundo momento, o motor, ou a “alma”[8], da máquina fará com que a força que a impulsiona se liberte dos limites da capacidade humana.[9]
            É então essa segunda transformação que permite agora a hipertrofia do motor na fábrica. Um único motor agora anima um conjunto inumerável de máquinas, que podem ser da mesma espécie (mera cooperação de máquinas) ou podem estar encadeadas e articuladas entre si (um verdadeiro sistema).
            A partir então dessa articulação de máquinas animadas por uma só “alma”, surge o grande organismo febril e ritmado. Nasce o autômato, o processo automático da produção. A eficiência passa então a ser fruto do caráter ininterrupto da produção, do fluxo de matérias primas de uma máquina (órgão) a outra. Por fim, a maximização dessa eficiência se dará pela eliminação – o mais que possível – da interferência humana.
            Nesse contexto, o trabalho humano passa a ser uma atividade inteiramente vinculada à maquina. Os operários devem corrigir as imperfeições do sistema, atuam nas brechas, nos intervalos de tempo entre um movimento e outro dos membros do autômato[10]. Além disso, são ainda responsáveis pela alimentação do grande motor que anima o organismo inteiro. No plano ideal, a máquina operaria por si mesma, livre do fator humano, que passa a ser depreciativamente tratado como “interferência”, ainda que, paradoxalmente, necessária para o funcionamento da fábrica.[11]
            Dessa maneira, a própria divisão do trabalho, longe de se pautar pelo principio subjetivo da especialização do trabalhador, pode agora ser objetivada enquanto um sistema, um processo em cadeia. A questão principal é agora de gestão das forças que circulam no organismo produtor.[12] Nesse processo, o trabalhador é então expropriado de todo saber que possuía. Sua alienação[13] agora o impede de ter qualquer identidade com o produto final fabricado e a lógica da gestão não permite a esse trabalhador qualquer ciência a respeito do processo produtivo como um todo. Ele passa a ser mais um órgão do autômato, órgão esse que se espera em breve tornar-se desnecessário.
            Nesse sentido, percebe-se que a automação realmente parece caminhar no sentido de eliminar o trabalho humano, mas não a labuta do trabalhador. O próprio Marx – de certo modo também o Engels[14] – já anuncia que todo esse processo automático tem como grande objetivo a maximização da exploração do trabalhador, a intensificação da extração de “mais valia”[15].
“A tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o processo imediato de produção de sua vida, e, assim, elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que delas decorrem.”[16]     
            Desse modo, o que o autômato ou o processo automático torna evidente, é uma concepção de técnica, que de certa maneira começou a se desenvolver muito antes dele. De certo modo, a pretensão de o homem se tornar senhor da natureza, já desde o cogito de Descartes, permitiu que a técnica pudesse se desenvolver enquanto processo de “assenhoramento” do mundo pelo sujeito moderno. Por fim, a ideia de técnica enquanto violência contra a natureza pode mostrar-se, mais claramente no autômato, como uma violência contra o próprio homem. Emerge assim a fábrica-monstro que se alimenta dos blocos de carvão e no processo consome a alma dos empregados. O trabalhador é então ao fim animado pela alma da fábrica e se move no ritmo triste e repetitivo impulsionado apenas pelo motor central. Desaparece o trabalho, o saber e a esperança do homem, que agora está sujeitado no interior de um processo objetivo.



[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I Volume 1. Editora Civilização Brasileira. 25ª edição. Rio de Janeiro/RJ. 2008. P. 438.  
[2] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Inferno. Editora 34. 1ª edição (14ª reimpressão). São Paulo/SP. 2007. P. 37. Texto Original: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”.       
[3] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. Cit.
[4] No caso especialmente o carvão na maquina a vapor. 
[5] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. Cit. P. 431.
[6] Ibidem. P. 429.
[7] Ibidem. P. 430.
[8] Alma no sentido daquilo que anima.
[9] Cf. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. Cit. P. 434.
[10] É aqui que Marx menciona o surgimento da figura do “engenheiro”, que deve corrigir o funcionamento e reparar os defeitos da máquina sem interferir no ritmo da produção.  
[11] Cf. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. Cit. P. 437.
[12] Certamente é possível ver aqui o germe dos saberes da administração e gestão que podem objetivar o sistema produtivo inteiro em sua natureza de cadeia produtiva. 
[13] Alienação no sentido marxista mais simples, de incapacidade de o trabalhador se reconhecer no produto de seu trabalho. 
[14] ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Editora Global. São Paulo/SP. 1985.
[15] Os exemplos emblemáticos são o trabalho feminino e infantil, a intensificação do trabalho e a maximização da jornada. Cf. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. Cit. P. 451/476. 
[16] Ibidem. P.428 (nota 89).