quinta-feira, 12 de julho de 2012

Rascunhos para uma Genealogia da Culpa


Publico hoje esse texto que foi primeiramente escrito como trabalho final para uma disciplina que cursei na PUC/SP ministrada pelo Prof. Dr. Márcio Alves da Fonseca. Fiz apenas algumas pequenas modificações para postá-la aqui. Sem mais, segue o texto.     

Rascunhos para uma genealogia da culpa:
 Uma leitura preliminar de História da Loucura

            Nesse breve estudo, se pretende apenas apontar algumas linhas gerais para o estudo da genealogia da culpa na modernidade ocidental. Para tal, inicia-se pelo estudo da experiência da loucura na idade clássica. Aparentemente a gênese da ideia de culpa da modernidade tem seu germe justamente no ato de aprisionamento dos loucos no hospital geral.        
            Ao descrever a experiência da loucura na idade clássica, Foucault nos mostra o surgimento de uma instituição que merece especial atenção, refiro-me aqui ao hospital geral. Essa instituição, que em Paris chegou a abrigar cerca de um por cento da população, era habitada por um conjunto de internos cuja diversidade, prima facie, parece impossível de ser explicada. O hospital geral era composto assim por “essa vizinhança que parecia atribuir uma mesma pátria aos pobres, aos desempregados, aos correcionários e aos insanos.” [1]
            O internamento emerge então como a estrutura mais visível da experiência da loucura na idade clássica. É essa prática, por excelência, que demonstra no seu arranjo institucional o golpe de força que separou, ainda em Descartes, a loucura da razão.
            Do ponto de vista da formalidade, o hospital geral surge por meio de decreto real. A referência maior aqui talvez seja o decreto de 1656[2] que criou o hospital geral de Paris. É preciso observar também que o hospital geral não é concebido aqui enquanto local de cura ou tratamento.

“O Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa.” [3] 
 
            De maneira ampla, podemos assim tratar o hospital geral como sendo um local não do tratamento curativo, mas propriamente da ordem. Trata-se de uma “instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época.” [4] Essa instituição de ordem funciona então de forma quase soberana. Não só a figura do diretor do hospital é imbuída internamente com o poder de decidir de forma definitiva, sem possibilidade de apelações externas, como o próprio regramento do hospital se constitui de forma quase independente das leis que emanam da soberania estatal.
            Essas instituições da ordem tratam então de “recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária.” [5] O sucesso institucional do hospital geral parece ser reconhecido pelo edito real de 1676 que “prescreve o estabelecimento de um ‘Hospital Geral em cada cidade do reino’” [6].
            Ao voltar as atenções novamente para a população que o estabelecimento do hospital geral abriga, é preciso buscar compreender o que dá a essa aparente diversidade inconciliável de corpos, a unidade necessária para que sejam todos colocados sob a tutela de um mesmo arranjo institucional.
            Para Foucault é o julgamento moral que permite essa “coesão”. A partir da grande transformação que a idade clássica promoveu na forma de lidar com a miséria é que se torna perceptível o signo que parece marcar todos aqueles internos do hospital geral; a culpa, a marca da desordem. 
            Em especial depois da reforma protestante, a pobreza vai, paulatinamente perdendo sua “positividade mística”. Pouco a pouco a doutrina protestante (em especial a calvinista) exclui da miséria sua quase missão de salvação pela caridade para atribuir-lhe como significado a marca do castigo divino. Pobreza e riqueza passam a ser vistos como signos de uma predestinação divina. “Deus não exalta o pobre numa espécie de glorificação inversa: ele o humilha voluntariamente em sua cólera, em seu ódio.” [7]  
            Diante dessa mudança, a própria idéia tipicamente cristã de valorizar as “obras da caridade” será revista pela reforma protestante. A caridade passará a ser vista em função da fé que a inspira. “Não é a obra que justifica, mas a fé que a enraíza em Deus.” [8] Nesse sentido, é salutar lembrar a Primeira Epístola aos Coríntios no Novo Testamento.  
            Existe uma distinção na opção de tradução e organização do texto do capítulo 13 desse livro entre as bíblias Católicas e parte das Protestantes que ilustra bem essa transformação que a reforma promoveu no papel da caridade. Nesse capítulo da epístola, os católicos tratam de três grandes virtudes, a saber: a fé, a caridade e a esperança. Já os protestantes, ao se referirem ao mesmo fragmento bíblico referem-se a essas virtudes como: fé, amor e esperança.
            Nessa pequena opção de tradução, que pode parecer inocente, é possível perceber a tentativa de dar a essa virtude um grau maior de generalidade. Ao trocar a “caridade” pelo “amor” os protestantes já denotam o seu afastamento da antiga concepção teológica de pobreza. “E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” [9]
            De forma ampla, são as próprias obras humanas que passarão a ser vistas em função da fé depois da reforma protestante. Nos locais onde a reforma se deu de forma mais contundente o que se viu foi uma “laicização das obras”. O Estado e a cidade “preparam uma nova forma de sensibilidade à miséria.” [10]. O miserável não mais será enaltecido em sua dor e visto como meio para salvação dos que com ele são caridosos. A pobreza vai paulatinamente encontrando seu lugar enquanto desordem pública. Socorrê-la já não se trata de salvar a alma, mas de um dever público. A miséria será então um obstáculo a concretização da ordem. Não se tratará mais de socorrer a pobreza, mas de suprimi-la. “Contribuir para seu desaparecimento [da pobreza] é ‘uma tarefa altamente necessária a nós, ingleses, e esse é o nosso primeiro dever como cristãos. ’” [11]      
            Ao observar o catolicismo, é perceptível que essa mudança na concepção da pobreza não foi uma peculiaridade da reforma protestante. Por caminhos um tanto diversos chega-se ao mesmo ponto.
            A igreja não busca modificar o valor que sua doutrina tradicional dá às obras. As obras santas e o exemplo que delas emanam continuam em posição de destaque na doutrina católica. O que ocorre é que a Igreja Católica passará a atribuir a suas obras “um alcance geral e avaliá-las conforme sua utilidade para a ordem dos Estados.” [12] É essa valorização do âmbito coletivo das obras em detrimento do significado dos gestos individuais da caridade, bem como o ato de tolher da miséria sua eminente dignidade que levam a doutrina católica a ponto muito similar dos protestantes reformadores.
            Essa passagem das obras individuais para as coletivas apontam tanto para fazer do socorro aos pobres um dever do Estado quanto para transformar a pobreza em uma falta contra a ordem. Não é assim sem razão que nessa mesma época se fortalece entre os católicos a idéia de que o Estado poderia taxar os ricos para socorrer os pobres. Trata-se precisamente de um esforço coletivo em defesa de uma ordem, no combate a uma desordem.  

“Doravante a miséria não é mais considerada numa dialética da humilhação e da glória, mas numa certa relação entre a desordem e a ordem que a encerra numa culpabilidade.” [13]     
         
            A partir desse momento a pobreza encontra seu lugar junto à desordem, ela atenta contra a coletividade e é ao mesmo tempo signo do castigo divino e passível de responsabilização moral. “Ela passa de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral que a condena.” [14]
            O internamento no hospital geral será então um meio de ordenar a desordem da miséria, de forma a suprimi-la. O ato de internar guarda assim uma profunda ambigüidade. Ele é ao mesmo tempo um socorro e um castigo; “a mão que afaga é a mesma que apedreja” [15]. Essa dúbia faceta do internamento produz também uma dualidade na visão da pobreza. Teremos assim, “pobres de Deus” e “pobres do Diabo”.
            A marca que distinguirá as duas formas de pobreza é a submissão à ordem do internamento. A miséria que se submete de bom grado ao hospital geral e que vê no seu encarceramento um “ato de amor cristão” e, em oposição a ela, a pobreza insubmissa que se esforça para escapar da imposição dessa ordem. Nas palavras de Foucault: “Os bons pobres fazem dela [internação] um gesto de assistência, e obra de reconforto; os maus – pela única razão de serem maus – transformam-na num empreendimento da repressão.” [16] 
            Ao voltar a atenção novamente aos loucos, é perceptível que a sua estadia no hospital geral se deve a esse mesmo julgamento moral. Os insanos estão fora do âmbito da produção, e assim como os pobres, no passado eram vistos com os olhos da caridade. Além disso, é preciso compreender que, na Idade clássica a loucura tem ainda um agravante em relação à pobreza. O louco não é apenas uma desordem econômica, ele é uma desordem da razão em si, ele é aquele que não cabe nas classificações da razão. A loucura é justamente a desrazão que precisa ser excluída por Descartes para não ameaçar as luzes e a clareza do pensamento.
            É válido lembrar que Foucault aponta, por exemplo, a incapacidade de na idade clássica classificar a loucura no quadro geral de doenças. Fato é que, esse esforço classificatório não se deu apenas no atinente a loucura ou as doenças. Para Foucault, a idade clássica tem na classificação uma das formas fundamentais do conhecer.
            Se o mundo havia sido organizado anteriormente pela semelhança (epistémê renascentista), na idade clássica é a representação que surge para assegurar a verdade. Foucault destaca que essa mudança da epistémê renascentista para a clássica passa por uma nova forma de ordenação do mundo. Essa ordem passa a ser a ordem do pensamento, da razão.

“O semelhante, que fora durante muito tempo categoria fundamental do saber – ao mesmo tempo forma e conteúdo do conhecimento – se acha dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença; ademais, quer indiretamente por meio da medida, quer diretamente e como que nivelada a ela, a comparação é reportada à ordem; enfim, a comparação não tem mais como papel revelar a ordenação do mundo; ela se faz segundo a ordem do pensamento e indo naturalmente do simples ao complexo.” [17] 
    
            Dessa maneira, na idade clássica conhecer significa representar um objeto e colocá-lo em um quadro classificatório. A partir das comparações com os demais objetos e da localização do representado no quadro é que podemos ter ciência, é que podemos efetivamente ter um conhecimento seguro do objeto.
            Pois bem, diante dessa forma de se produzir a verdade na idade clássica, não é de se estranhar que o louco tenha se transformado também em um objeto de análise. Nesse caso, o objeto não era propriamente o louco. Foucault nos aponta que a tentativa de análise aqui passava por separar a loucura de seu portador, o louco.
            Dessa maneira, o louco não deveria falar sobre sua loucura. A análise tratava a loucura como uma essência a ser depreendida em sua natureza mesma.  A tentativa é de deduzir analiticamente a loucura. Diante da dificuldade de se chegar a pretensa essência pura desse mal, passou-se a buscar as manifestações materiais dessa essência, os sintomas.
            Esse “método sintomático” objetivava, através dos sintomas da loucura, colocá-la no quadro geral classificatório das doenças. Isso nada mais era do que a aplicação direta da ordenação da representação, conforme anteriormente mencionamos. Conhecer a doença pela sua classificação é a tentativa de compreender sua natureza, a racionalidade dessa natureza.
            Fato é que Foucault trata justamente da impossibilidade de reduzir a loucura a um lugar na tabela da classificação das enfermidades. É nesse ponto que compete mencionar novamente o “golpe de força” de Descartes.

“A loucura, cujas vozes a Renascença acaba de libertar, cuja violência porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força.”[18]

            Para entender um pouco esse “golpe de força” da razão que excluiu a loucura, cabe a referência que Foucault faz na História da Loucura a Descartes. A menção aqui é à primeira meditação de Descartes.
            Foucault vê exatamente no §4º da primeira meditação a completa exclusão da loucura como condição de desenvolvimento do pensamento racional. Descartes não se utiliza da loucura da mesma maneira que menciona o argumento dos sonhos ou do gênio maligno. Enquanto esses demais argumentos levam a um “dubitare” metódico, a loucura precisa ser afastada para que o próprio sujeito racional possa emergir da dúvida. A loucura, vista como um vício do sujeito em si, precisa ser excluída.
            “E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus? Exceto, talvez, que eu me comparasse a estes dementes” [19]. Veja que nesse ponto ainda das meditações, Descartes não levanta essa questão da demência para se assegurar da existência de um mundo físico ou de seu corpo físico. Essa certeza só poderá ser atingida depois de provada a existência de Deus na terceira meditação[20]. Essa questão da loucura está aqui colocada como preliminar para garantir o próprio desenvolvimento desse raciocínio. “São dementes e eu não seria menos excêntrico se me pautasse por seus exemplos.” [21] É com essa exclusão da loucura que Descartes permite o continuar de seu processo de dúvida, de dubitare que o conduzirá certeza do cogito.

“A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser.” [22]

            Em verdade, se a loucura poderia colocar em risco o próprio sujeito que duvida (cogito) ela colocaria em cheque a própria representação na idade clássica. Heidegger, ao ler Descartes, afirma que “O cogitare é um apresentar para si aquilo que é re-presentável.” [23] Ou seja, podemos ver o cogitare de Descartes não apenas como pensar, mas sim como representar. Dessa forma, se a loucura poderia colocar em cheque as próprias faculdades docogito cartesiano, é preciso excluí-la do universo da razão, para evitar que suas sombras ameacem o irradiar racional e o próprio “assenhormento” do mundo pelo homem como diria Heidegger.
            Dessa maneira, a loucura se tornou aqui “o outro” da razão, desrazão. A demência está fora dos parâmetros de racionalidade e definitivamente fora do sujeito racional de conhecimento. Ela não é algo acessível à razão vez que se configura enquanto aquilo mesmo que se mostra apenas na ausência da razão. Conseqüentemente, se a loucura está fora do sujeito que se “assenhora” do mundo, ela está fora desse mundo dominado pelo cogito.
            Assim, a loucura não faz parte do rol das coisas que podem ser objetivadas pelo sujeito. Como “o outro” da razão, a loucura não tem lugar na ordem do mundo da representação; ela não pode ser representada para esse sujeito racional. Fatalmente, não há lugar para a desrazão no quadro da ordem racional.
            A loucura não pôde ser classificada na idade clássica. Os parâmetros da ordem vigente não comportavam um lugar para seu oposto. A eventual apreensão da loucura pelo sujeito racional tencionaria o próprio sujeito de conhecimento. Qualquer tentativa de conhecer a desrazão por meio da razão estaria, ou fadada ao fracasso (como as tentativas de classificar a loucura), ou colocaria em cheque o próprio estatuto da razão e do sujeito de conhecimento.
            Nesse sentido, parece-me que na idade clássica foi preciso esconder a loucura para fazer emergir a razão. No momento em que se volta para a loucura, ou a razão continua vendo-a como o nada, ou permite-se que o conteúdo da loucura volte a obscurecer as luzes da razão. 
            É nesse sentido que sob o louco recai então uma dupla condenação. Ao mesmo tempo em que ele é uma desordem econômica que é obstáculo da concretização da ordem pública, ele é também o ícone da desrazão que ameaça os próprios fundamentos da racionalidade clássica. O louco é assim a desordem e a corrupção da ordem. Ele sofre de um mal que, diferentemente da miséria, não pode nem mesmo ser colocado enquanto objeto da razão. A loucura na idade clássica não pode ser domesticada pelo discurso tranqüilizador da explicação. O louco é então internado, por ser a antítese da ordem e para purgar os pecados da razão. 
            Na idade clássica a culpa encontra então seu lugar. Ela é a responsabilidade por tudo aquilo que foge da ordem racional do mundo. Para além de comprometer a ordem, a culpa será também a resposta para punir a insurgência. O grande pecado não será apenas estar fora da ordem, mas não ser dócil. O pior pobre será aquele que se insurge, o crime não é então simplesmente a desordem, mas o descumprimento ao preceito cristão da servidão e da humildade. Para a desordem, a assistência; para a insurgência a penitência. O misto de castigo e assistência que permeia assim o hospital geral será balizado pelo preceito da culpa moral que deve assolar todos, socorrer alguns e punir outros. Trata-se de uma prática onde a punição e assistência têm como única diferença a aceitação ou não do “agente da desordem”.              

Ivan de Sampaio



[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Editora Perspectiva. 9ª edição. São Paulo/SP. 2010.  P. 48.
[2] Ibidem. P. 49.
[3] Ibidem. P. 50.
[4] Ibidem. P. 50.
[5] Ibidem. P. 49.
[6] Ibidem. P. 51.
[7] Ibidem. P. 56.
[8] Ibidem. P. 57.
[9] Bíblia.  1 Coríntios 13:3
[10] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. P. 58.
[11] Ibidem. P. 58.
[12] Ibidem. P. 59.
[13] Ibidem. P. 58.
[14] Ibidem. P. 59.
[15] Augusto dos Anjos in: Versos Íntimos
[16] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. P. 61.
[17] FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Editora Martins Fontes. 9ª edição. São Paulo/SP. 2007. P. 74.
[18] FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Op. Cit. P. 45.
[19] DESCARTES, René. Meditações in: Os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo/SP. 2004. P. 250.  
[20] Para Descartes Deus será o responsável por garantir que as representações feitas pelo homem no plano do pensamento (cogito) correspondam efetivamente a objetos no mundo material. No fundo, em Descartes Deus ainda é o responsável por assegurar a relação corpo/alma.
[21] DESCARTES, René. Op. Cit. P. 250.
[22] FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Op. Cit. P. 47.
[23] HEIDGGER, Martin. Nietzsche (Vol. II). Editora Forense Universitária. São Paulo/SP. 2007. P. 110. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Postagem Administrativa


Olá a tod@s!

            

Faço esse brevíssimo post hoje apenas par das as boas vindas ao Prof. Cassiano Terra Rodrigues à blogosfera! O professor e amigo Cassiano criou o blog horizontesafins esse semestre e já aproveito a oportunidade para recomendar a leitura dos seus textos. Seja muito bem vindo Professor e esperamos ansiosamente suas próximas postagens.

Abraço a todos e todas!

Ivan Sampaio        

terça-feira, 10 de julho de 2012

A Emergência do Sujeito e a Liberdade: Heidegger e Sartre


Depois de longos meses de abandono retomo os escritos nesse blog. Hoje publico então esse pequeno texto que escrevi ainda no ano passado como parte da avaliação de uma disciplina que cursei na graduação em Filosofia na FFLCH/USP ministrada pelo Professor Dr. Eduardo Brandão. Sem mais, segue o texto.     

A emergência do sujeito e a liberdade:
Heidegger e Sartre

            O marco inicial da modernidade está no pensamento de Descartes. Ao menos é assim que afirma Heidegger. Nessa leitura que o filósofo alemão faz de R. Descartes, o que tem relevante destaque e que caracteriza precisamente o pensamento moderno é a emergência do sujeito. Não um sujeito que simplesmente funda a cisão entre objeto e sujeito, mas um ente que pode pela representação se “assenhorar” do mundo.
            Antes de Descartes é como se o “ente” subjazesse por si mesmo. “Todo ente, na medida em que é um ente, é concebido como sub-iectum.” [1]. Dito de forma mais abrangente, e talvez um tanto hegeliana, antes da metafísica moderna é como se o “ser ai” do mundo não precisasse do homem para existir.
            O que acontece na modernidade é que o homem (o sujeito) passará a ser o destinatário de toda representação. O mundo passará a existir (ou ao menos terá sua existência mediada) pela representação. O homem será assim, ao mesmo tempo, o destinatário e o meio pelo qual a representação é construída, por vezes ele poderá ser mesmo o conteúdo representado. É diante disso que esse homem, esse sujeito precisará, antes de tudo, ser assegurado.
            O cogito cartesiano é visto então por Heidegger como o meio para estabelecer os critérios da verdade, e a verdade mesma passa agora a ser reduzida à certeza. “O ‘novo’ da determinação da essência da verdade consiste no fato de a verdade ser agora certeza.” [2] Mas, é preciso destacar que a leitura que Heidegger faz do cogitare cartesiano é que possibilitará essa ideia de verdade enquanto certeza, e mais do que isso, ao ler o cogitare de Descartes não apenas enquanto pensar, mas enquanto representar, Heidegger pode começar a falar efetivamente em um “assenhoramento” do mundo pelo homem.
            O filósofo alemão nos afirma que “o cogitare é um apresentar para si aquilo que é re-presentável.” [3], mais do que isso, “algo só é apresentado – cogitatum – para o homem, quando é fixado e assegurado para ele como aquilo sobre o que ele pode ser senhor a partir de si” [4]. Mas o que exatamente é assegurado por meio da representação? Podemos perceber no ato de representar uma tentativa de objetivação do mundo pelo homem, por meio da qual esse sujeito se torna senhor do mundo. Mas a questão é que a representação é antes uma forma de o homem se assegurar de si mesmo.
            Para Heidegger, “todo re-presentar humano é um representar-‘se’” [5]. Não se trata aqui de simplesmente colocar o homem enquanto objeto de si. Trata-se sim de perceber que o homem que representa é co-representado para si, sem que se torne propriamente objeto nesse ato. É através dessa leitura que se torna possível ver a sentença de Descartes “cogito é cogito me cogitare” como “a consciência humana é essencialmente consciência de si.”[6]
            È essa consciência de si que tem caráter de certeza necessária e concomitante ao ato de representar para a afirmação de toda verdade na modernidade.
“Pois, na re-presentação humana de um objeto, aquilo ‘em contraposição ao que’ ele é posicionado, a saber, aquele que re-presenta, já está a-presentado por meio desse objeto enquanto um objeto que se encontra contraposto e re-presentado, de modo que o homem pode dizer ‘eu’ por força dessa apresentação para si mesmo como aquele que re-presenta.” [7]                                                          
            Nesse sentido, encontra-se assegurada a representação, bem como o sujeito que representa. É assim que Heidegger pode afirmar que o “eu sou” não é deduzido primeiro do “eu represento”. O que acontece é que o “eu represento” é, “segundo a sua essência, aquilo que já me apresentou o ‘eu sou’.” [8]
            A partir desse “asseguramento”, da certeza do cogito sum, está então determinada a “essência de todo conhecimento e de tudo passível de ser conhecido, isto é a essência da mathesis[9]. A partir disso a natureza, o mundo passa a ser visto como res extensa, como dependente do sujeito, como servo desse sujeito moderno.
            O que ocorre assim na modernidade, é que o homem, enquanto sujeito, se “assenhora” do “ente”, bem como de si mesmo. Subjetivamente, o homem expande sua liberdade, e nesse âmbito não limites para o homem. Heidegger, falando na linguagem de Kant afirma que “a nova liberdade [liberdade moderna] consiste no fato de o homem fornecer a lei a si mesmo, de ele escolher o imperativo e se ligar a ele” [10]. É o “assenhoramento” do mundo pelo homem através da emergência do sujeito moderno que permite essa “abertura para multiplicidade daquilo que no futuro pode ser posicionado pelo próprio homem lucidamente como algo necessário e imperativo.”[11]
            Nesse ponto, acredito ser possível nos voltarmos ao existencialismo de J-P. Sartre e observar como ele constrói, de forma similar a Heidegger, a sua ideia de subjetividade e como isso repercute também em uma concepção similar de liberdade humana. O existencialismo parte então da anterioridade da existência em relação à essência.
   
“há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana” [12].
    
            O ponto de Sartre é que “não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber”[13] previamente. De forma bastante sintética, podemos reconstruir o percurso até essa assertiva do existencialismo sartriano em termos similares a leitura que já fizemos de Heidegger.
            A partir de Descartes Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade e emerge o cogito cartesiano, a verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da representação. Ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[14], assegura a si mesmo enquanto aquele que é.
            Assim, é possível afirmar que o existencialismo colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência, ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência, sua própria natureza, seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é uma construção do próprio homem. Para Sartre o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”[15]. A isso Sartre chama subjetividade.
            Sartre nos afirma assim que “o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade de sua existência.”[16]  Aqui chegamos a ideia de liberdade do homem. A questão é que, ao conceber a existência como anterior a essência e atribuir à vontade do homem a responsabilidade pelo projeto do seu “vir a ser”, Sartre nada mais está afirmado do que a liberdade desse homem na própria constituição de sua subjetividade, e por extensão na construção do mundo como um todo. Nesse sentido, poderíamos afirmar, que “o único dogma do existencialismo é a afirmação da liberdade do homem” [17].
            Dessa maneira, é preciso ver que há uma aproximação entre a ideia de subjetividade em Sartre e em Heidegger, bem como que em ambos, a emergência do sujeito enquanto senhor do mundo repercute em uma concepção de liberdade do homem. Em Sartre, por sua vez, essa liberdade é assim acompanhada de uma responsabilidade e é diante dessa potência infinita do homem que podemos começar a perceber o peso da responsabilidade que Sartre nos fala. “Sou responsável por mim e por todos, crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem.”[18]. Nesse contexto o homem é livre e por ser livre se torna também angustia.
            “Tudo passa como se, para todo homem, toda humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz e se regulasse pelo que ele faz.” [19] A pergunta que surge é: será que tenho eu o direito de tomar essa decisão sobre mim e sobre o mundo? Essa é a pergunta da angustia, a pergunta que evidencia a tomada de consciência do peso das responsabilidades por sermos livres, por podermos escolher nós mesmos e o mundo. Essa angustia não nos leva ao quietismo, ela não nos impede de agir. Em verdade essa angustia é a condição mesma de nossa ação. Agimos por que somos livres para tal. É a angustia que pode nos apontar o peso da responsabilidade que carregamos, e é essa responsabilidade que nos assegura sermos livres.


[1] HEIDGGER, Martin. Nietzsche (Vol. II). Editora Forense Universitária. São Paulo/SP. 2007. P. 104. 
[2] Ibidem. P. 110.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem. P. 113.
[6] Ibidem. P. 115.
[7]  Ibidem . P. 119.
[8] Ibidem.
[9] Ibidem. P. 122.
[10]  Ibidem . P. 106.
[11] Ibidem.
[12] SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo in Os Pensadores. Editora Abril Cultural. São Paulo/SP. 1978. P. 06.    
[13] Ibidem.
[14] Em Descartes Deus ainda perece como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue a Deus para explicar a relação corpo/alma, Deus aparece já de forma indireta. A verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.   
[15] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit. P. 06.
[16]   Ibidem .
[17] PERDIGÃO, Paulo.  Existência e Liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Editora L&PM. Porto Alegre/RS. 1995. P. 22.  
[18] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit. P. 07.
[19] Ibidem. P. 08.