quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Texto de Apresentação da Monografia de Conclusão de Curso


Texto de apresentação da monografia de conclusão de curso
Proferido na banca do prêmio de “menção honrosa em monografia jurídica” 
no dia 08 de dezembro de 2011.

Título do trabalho:
Banca:

Introdução

            Nesse trabalho busquei, de certa forma, sistematizar algumas imagens sobre o Estado e os fundamentos do direito positivo que construí ao longo do curso de graduação em direito. Penso então nesse trabalho como o retratar de um percurso, não um caminho como os caminhos na floresta de Heidegger, mas um percurso como o percorrido por Joseph K. nos intrincados corredores do tribunal. No início, parece apenas um caminhar em ambiente claustrofóbico onde se retira das luzes da lei a própria escuridão das vielas da burocracia. Mas, o que foi possível perceber, e espero ser capaz de mostrar aqui, é que todo esse imponente edifício jurídico nada mais é do que o biombo que oculta os pudores do poder.                
            Dito de forma bem geral, o que busquei fazer foi traçar duas linhas críticas relativamente àquilo que a filosofia política intitula de “teoria da soberania” ou “teoria jurídica da soberania”.

Capítulo I: Teoria da Soberania

            No primeiro capítulo de desenvolvimento, fiz uma breve síntese dos contornos gerais da idéia de soberania. Não vou aqui resumir todo esse capítulo, mas, para essa exposição acho que nos basta destacar que parti do pensamento de Maquiavel, onde julgo que encontramos a primeira formulação mais completa da soberania, e, em seguida, abordei algumas idéias pontuais de três contratualistas (T. Hobbes, J. Locke e J-J. Rousseau).
            O que busquei mostrar com o estudo desses filósofos chamados contratualistas, é que a preocupação central em todos eles é a mesma. Na modernidade, parece que o grande problema filosófico-político passa a ser a questão da legitimidade do poder soberano. Do mesmo modo, o direito parece ser construído também no âmago dessa problemática. A teoria da soberania e o direito que nela se fundamenta são então, preponderantemente, formulados em torno do problema moderno da legitimidade do poder.

Capítulo II: O Ordenamento Jurídico Simbólico

            Dediquei o segundo capítulo de desenvolvimento do trabalho ao estudo da legislação e da constitucionalização simbólicas. A pretensão foi apontar o significado de uma norma jurídica ineficaz do ponto de vista normativo no interior do sistema jurídico.
            Iniciei por um estudo da legislação simbólica. De forma bastante sintética poderíamos defini-la como sendo aquela que carece de efeitos normativos e cuja referencia textual é normativo-jurídica, mas serve antes para finalidades políticas.  Esse efeito simbólico é sempre manifesto no âmbito do predomínio. Toda lei produz efeitos no âmbito do simbólico, a particularidade aqui é que esses efeitos simbólicos tendem a supressão da eficácia normativa da legislação.        
            Após a propositura e análise de uma tipologia para as normas simbólicas conforme o pensamento de Marcelo Neves foi possível destacar a preservação da ordem como a marca predominante do efeito simbólico positivo das normas.
            Mencionarei brevemente apenas um desses tipos de legislação simbólica que explorei e que julgo o mais importante para o presente trabalho, refiro-me a legislação álibi.
            A legislação álibi seria aquela que teria como função dar uma resposta a algum anseio imediato da população. O objetivo aqui é descarregar a pressão política da população e expor o Estado como sensível a suas demandas. Vejam que, pouco importa se a lei tem ou não condições de efetivamente suprir as demandas que a motivou. Em verdade, trata-se mesmo de dar uma aparência de solução ao problema e com isso, inclusive impedir o caminho para qualquer outra medida que poderia ser efetiva.
            Um exemplo que podemos mencionar no caso da nossa legislação pode ser a lei de crimes hediondos (lei 8.072/90). Essa lei foi aprovada pelo congresso nacional em resposta da escalada da criminalidade carioca, poucos anos depois, em 1994, essa mesma lei foi ainda emendada pela primeira lei proveniente da iniciativa popular na história do Brasil. O motivo dessa emenda foi o assassinato a filha da atriz global Glória Perez.
            Agora, o interessante dessa lei de crimes hediondos é que ela versa preponderantemente sobre regimes de cumprimento de penas, ou seja, ela não tipificou novas condutas como crime, nem disciplinou meios mais eficientes de apuração de delitos. Veja que essa legislação não tinha a menor capacidade para combater a criminalidade, ela apenas agravou a penalidade de condutas que já eram crimes. Tanto o foi que a promulgação da lei em 1990 e de sua emenda em 1994 não tiveram qualquer impacto nas estatísticas de cometimento dos crimes. A edição da lei era, em verdade, mera resposta legislativa para reavivar a confiança popular na atuação estatal.
            No fundo a legislação álibi serve então de “meio de exposição simbólica das instituições” [1]. O Estado vem se mostrar como ente seguro e digno de confiança. A questão é que essa medida “não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso obstrui o caminho para que sejam resolvidos.”[2]        

a marca [da legislação simbólica] parece ser sempre uma busca por manutenção, por estabilidade, por perenidade. Nesse sentido, me parece que o grande efeito simbólico manifesto é a conservação de uma determinada ordem.” (P. 40/41)  

            Depois de feita essa análise inicial dos efeitos simbólicos da legislação, passei ao exame do simbólico no atinente ao núcleo do sistema jurídico, a Constituição.
            A partir do estabelecimento da Constituição como doadora de sentido e validade para todo o direito positivo, foi possível observar os efeitos simbólicos manifestos no topo da pirâmide da hierarquia das normas. Nesse sentido, percebeu-se que a carência de normatividade no núcleo do sistema jurídico aponta para a falência do próprio direito positivo enquanto instrumento normativo.
            Ao perceber a Constituição enquanto símbolo, podemos apontar para a falência das regras próprias que supostamente conduzem o exercício da soberania. Quando a Constituição parece não se concretizar no mundo fenomênico, denota-se que esse texto não tem a capacidade de regrar efetivamente as ações do Estado.     
            No âmbito dos efeitos positivos da Constituição enquanto símbolo, salientei que a positivação do direito parece funcionar mais para evitar a concretização do conteúdo de seus textos do que para garantir sua efetiva aplicação. Trata-se de uma função álibi do próprio processo de positivação e do direito positivo como um todo.  Da constitucionalização simbólica

“não decorre nenhuma modificação real no processo de poder. No mínimo, há um adiamento retórico da realização do modelo constitucional para um futuro remoto, como se esta fosse possível sem transformações radicais nas relações de poder e na estrutura social”.
             
            Como conclusão desse capítulo, mencionei a percepção de um Estado não jurídico, cujas práticas não se orientam pelos ditames constitucionais ou legais. A ordem jurídica parece funcionar mais como mera mantenedora do Estado e de sua própria reprodução enquanto ordem discursiva ao invés de agir como limite ou como meio de conduzir as ações estatais.

Capítulo III: Por uma anti-teoria do Estado

            No terceiro e último capítulo de desenvolvimento do trabalho, o esforço teórico se construiu em torno de uma questão: se o direito positivo não regra a sociedade conforme seus ditames e atua preponderantemente enquanto preservação de uma ordem, o que afinal regra a sociedade e que ordem é essa que parece operar fora do âmbito do discurso jurídico da soberania?          
            Primeiramente, me afastei de uma análise ontológica do poder. O objetivo da análise nesse capítulo foi observar o poder não como uma substancia ou enquanto um ontos. Dessa maneira, o poder não pode ser possuído nem colocado em um local, classe ou ente. Não há aqueles que detêm o poder e aqueles que não detêm. O poder se exerce, não possui uma natureza, mas é antes um conjunto de mecanismos que opera que se manifesta no bojo das relações sociais. Nesse sentido, o que se busquei fazer nesse capítulo foi tratar da genealogia dessas relações de poder, partindo de suas manifestações mais capilares até as organizações mais gerais das estratégias de poder.
            Em seguida, por meio também das análises de M. Foucault em seu curso ministrado no Collège de France em 1976 (Em Defesa da Sociedade), inverti a análise contratualista sobre a formação do Estado. Foucault busca fugir da formulação de Clausewitz e, ao invés de tratar a guerra como a política praticada por outras vias, afirma antes que “a política é a guerra continuada por outros meios”. 
            Por meio dos discursos analisados por Foucault sobre essa forma de ver a política, foi possível destacar duas críticas à teoria da soberania. Primeiro, os teóricos contratualistas, em especial T. Hobbes, não são teóricos da guerra. Esses filósofos além de descreverem uma guerra que não vai além do plano da representação são antes idealizadores da paz. O pacto hobbesiano coloca fim a guerra, institui a paz. Em segundo lugar, quando se afirma que a soberania coloca termo a guerra, o grande efeito dessa afirmação é antes esconder em baixo dos tecidos alvos da paz a vermelhidão da guerra.    

“A lei não nasce da natureza, junto das fontes freqüentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo.” [3]                

             A questão é que isso não significa que o nascimento do Estado tenha representado o armistício das forças em confronto. “A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares.” [4] 
              
“O que propomos aqui é justamente perceber que por baixo das cedas alvas da ordem, o caos permanece, a lama permanece, o enfrentamento permanece, a guerra permanece.” (P. 67)  

            No fundo, esses discursos que afirma a instituição da paz, apenas colocam a guerra em outros termos de forma a garantir que determinados grupos que haviam conquistado uma “vitória” circunstancial possam, por meio da instituição de uma ordem, não mais colocar seus privilégios em jogo nas disputas de poder. Trata-se de regrar a guerra em benefício de determinados interesses, de colocá-la em termos que beneficiam um dos lados do conflito. 
            Depois dessa análise, busquei reconstruir as formulações foucaultinas a respeito da idéia de governo. Foram deixadas um pouco de lado as relações de dominação e debrucei-me com mais atenção no poder que conduz.
            Uma vez que o discurso da soberania, pelas análises de Foucault, se mostrara mero meio para ocultar a guerra perpétua da sociedade; os estudos da genealogia do governo emergem justamente para apontar como, dentro das relações belicosas de poder, é possível que exista um poder que conduz os corpos e que pode gerir as populações.
            Desse ponto, o que quero destacar é que podemos depreender dois modelos daquilo que Foucault chama de normalização. A normalização disciplinar e a normalização da segurança ou do biopoder. A normalização disciplinar ou “normação” trata de partir de um padrão de normalidade prévio e buscar moldar os corpos a essa norma. Ela busca desenvolver métodos de classificação, de vigilância e de adestramento. Opera enquanto uma tecnologia de poder que produz comportamentos muito mais do que reprime. Por fim ela permite que se estabeleça uma divisão entre os aptos e não aptos, entre os normais e os anormais. O esforço na disciplina será então de “normação” de transformar tudo (as pessoas, os gestos, os atos, os pensamentos) segundo seu padrão de normalidade. De forma geral, vemos essa forma de normalização nos âmbitos intra institucionais (presídios, escolas, hospitais, etc.).
            Já a normalização no âmbito da segurança não estabelece previamente esse padrão de normalidade. Aqui primeiro se apreende a curva normal de fenômenos sobre os quais se pretende intervir. Qual é a taxa média de contaminação da população por determinada doença? Quantos crimes são cometidos em média por ano nessa cidade?  etc. A partir daqui é que se pode buscar minorar os fenômenos negativos e majorar os positivos. Essa normalização então investe, atua sobre índices de normalidade. Já não se trata de uma divisão entre normal e anormal, mas sim de estabelecer parâmetros de tolerabilidade, de “desejabilidade” dos fenômenos. Podemos chamar essa forma de intervenção nos domínios da vida da população de “biopoder”.                                                        
            Pois bem, o que quero destacar de tudo isso é que, me parece que aquilo que entendemos por governo esta mais ligado a essa idéia de disciplina e de biopoder do que aos discursos da soberania jurídica.                           
            Dessa maneira, desenvolvi ainda nesse trabalho, por meio dos estudos dos cursos de Foucault no Collège de France em 1978 (Segurança, Território, População) e 1979 (Nascimento da Biopolítica) uma teoria do governo. Procurei mostrar como as práticas de governo, originárias em grande parte da pastoral cristã no medievo, pouco a pouco se secularizaram e se “entificaram” no Estado.
            A idéia de governo parece surgir, ou ser inspirada no chamado Regimen Animarum (Governo das Almas). Da mesma forma que o clérigo cristão deveria conduzir à salvação das almas, pouco a pouco foi se atribuindo ao soberano o dever de conduzir à salvação dos corpos e da cidade. Ocorre que, a autoridade desse soberano, ou o Regnum, era visto como meio para possibilitar que ele cumprisse essa função. Maquiavel parece inverter e mesmo confundir essa distinção entre o Regimen e o Regnum, entre o governo dos corpos e a autoridade do soberano. O governo em Maquiavel parece ser colocado a serviço da manutenção da autoridade. Já na modernidade o tema do governo é retomado, ele reaparece como se fosse agora função do Estado. Dessa forma, enquanto o Estado gira e torno dos discursos da soberania, o governo pode ser tratado em outros termos. É assim que o governo parece guardar relação muito maior com a lógica da economia política, com a lógica de custo benefício, com as práticas de disciplina e de biopoder do que propriamente com a lógica da legitimidade soberana.
            Veja então que, ao contrário de o Estado produzir um governo, o governo aparece como sendo anterior mesmo ao Estado. De certa forma o que vemos foi um processo em que a práticas de governo parecem ter se “entificado” no Estado, mas de forma a se manter fora da lógica dos discursos da soberania. O que parece ter acontecido foi, como diria Foucault, uma “governamentlização” do Estado.
            Dessa forma, o que pude destacar é que a “normação” disciplinar bem como a normalização do biopoder são as duas formas efetivas de exercício de poder ocultadas pelos discursos jurídicos da teoria da soberania. As práticas efetivas de governo não cabem na dicotomia da lei permitido-proibido. A população parece não poder ser gerida nesses termos. É preciso entender a ordem que opera nos processos de domesticação dos corpos e de gerência dos fenômenos quantificados pela incerteza da probabilidade. Nesse sentido a lógica a que se reporta a essas formas de poder parece ser antes a da economia, a da relação custo benefício e não a da dicotomia legal ilegal.
            É nesse sentido que podemos ver mesmo o cumprimento e o descumprimento das normas legais ou constitucionais. O Estado não faz ou deixa de fazer isso por que é ilegal ou legal. Agora que parece que orienta sim as condutas do Estado são os custos, qual é o custo (custo aqui entendido no sentido largo do termo, curso econômico, político, social, etc...). Qual é o custo do cumprimento da lei, e de seu descumprimento? Essa parece ser mais a pergunta que orienta o exercício do poder do Estado e das práticas de governo. Nesse contexto o simbólico poderia ser visto como meio mesmo de lidar com esses custos políticos em torno do discurso jurídico.                      

Conclusão

            Dessa maneira, a soberania parece funcionar enquanto um discurso tautológico que opera apenas enquanto símbolo que oculta as entranhas do poder.
            É por meio da soberania que a sociedade contemporânea retira da democracia das formalidades do Estado sua servidão às práticas de governo. A soberania usa assim, as luzes da democracia para ofuscar a percepção e ocultar a submissão ao biopoder e à disciplina, para ocultar à lógica econômica da gestão da vida.        
“É preciso falar constantemente da democracia e seus princípios, para que não se torne perceptível que suas formas não dizem respeito à efetividade do poder. É necessário que se afirme, dia após dia, a supremacia da Constituição, para que não se perceba a lógica econômica real da governamentalidade. É imprescindível que a paz seja cotidianamente louvada para que a guerra continue silenciosa. O Estado busca, constantemente, afirmar sua legitimidade, para que o governo permaneça fora desses parâmetros. O direito precisa ser continuamente assegurado, para que nenhum outro discurso de poder possa emergir das profundezas das instituições ou da multiplicidade da população.” (P. 93)   


[1] NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo/SP, Martins Fontes, 2ª edição. 2007. P. 38. 
[2] Ibidem.
[3] FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). P.58/59.
[4] Ibidem, P.59.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Les premières impressions de “La Ville-Lumière”


Vue de la Cathédale de Notre-Dame 

            Chegar a Paris por seu imponente e organizado aeroporto de Orly, bem como o rápido controle de imigração, que apenas carimba os passaportes sem formular qualquer pergunta ao estilo estadunidense, é mais que suficiente para causar uma excelente primeira impressão do país de Robespierre.

            Por outro lado, o trajeto do aeroporto para o centro de Paris já causa um impacto diferente em quem o percorre pala primeira vez. O trânsito presente em qualquer hora do dia, a “pobreza” na periferia da cidade, bem como um número incrível de pequenos reparos em tudo que se possa imaginar, (calçadas, bueiros, pavimento, etc.) já mostra que as luzes de Paris não são a única face da cidade, mas apenas uma delas.
            Ainda assim, é difícil não se deixar encantar pela cidade. Além da beleza misturada ao peso de sua história, é surpreendente observar o seu funcionamento preciso. Tomemos como exemplo o metrô de Paris; uma rede que cobre cada canto da cidade.
            A funcionalidade do sistema metroviário parisiense é realmente surpreendente. Trens com pontualidade britânica, sempre cheios. Veja, neste caso, o fato de o metrô ser cheio só demonstra sua funcionalidade. Trens cheios significam sistema bem utilizado e circulação de pessoas; é preciso diferenciar isso do que acontece, por exemplo, em São Paulo na estação da Sé às 18h30min. Em São Paulo, o metrô não é bem utilizado, em verdade, lá o metrô não é “cheio”, ele entra em colapso pela falta de capacidade. Em Paris os trens são cheios, mas é incomum ter que esperar o próximo trem por lotação excedida. Nas vezes em que isso acontece, o próximo trem nunca leva mais do que os 2 ou 3 minutos anunciados nos letreiros da estação.
            A verdade é que a distribuição das estações de metrô a cada poucos quarteirões em Paris mostra uma cidade que conseguiu se construir para além do automóvel. Agora, ainda sobre as diferenças com o metrô de São Paulo, o metrô parisiense é bastante rústico, em alguns lugares estragado, desgastado, velho e até sujo. Essa diferença ressalta algo maior que a qualidade do acabamento das estações de metrô em Paris e em São Paulo.
            Em Paris, a preocupação é pelo funcionamento do sistema de mobilidade da cidade, ele tem de ser funcional, mais do que belo. Em São Paulo o metrô é o retrato da idéia de “higiene” pública, onde tudo deve ser “limpo” ainda que isso seja feito em detrimento do sistema em si. A verdade é que caminhar pelos corredores da estação parisiense, a princípio causa uma impressão ruim para um paulista, mas em pouco tempo se percebe que o metrô não precisa tem limpeza hospitalar ou acabamento impecável. Aliás, para um sistema de transporte de massas sustentável é melhor que seja rústico, pois a manutenção de estações como as paulistas, finda por tornar mais oneroso o sistema como um todo.
Bande dans le métro à Paris (Gare République)
            Essa gestão dos metrôs em São Paulo, que se pauta pela curiosa teoria americana “the broken windows theory”, finda por coibir que o metrô e suas estações sejam realmente local de diversidade como se espera de um local público. Podemos tomar como exemplo a música nos corredores das estações parisienses. Obviamente que a figura do violinista tocando no metrô também está mais ou menos presente em São Paulo[1], mas em Paris não se trata apenas disso. É bastante comum vermos toda uma banda[2] montada nas estações de metrô, até mesmo um conjunto de música cubana com uma dezena de integrantes já pude ver reunido na pequena estação de Ourcq[3]. Isso em São Paulo certamente seria tratado como caso de polícia. Em Paris essas formas de gestão higienista e semi-nazista dos espaços públicos parece enfrentar grande resistência da população. A verdade é que não passa pela cabeça dos franceses que aquele espaço não possa ser utilizado de outras formas. Por fim, em Paris parece que não se costuma fazer a estranha associação que se faz em São Paulo de liberdades públicas com caos público. Os mais de 10 músicos cubanos tocando juntos e de certa forma bloqueando parte do corredor não são vistos como uma forma de desordem pública. Os espaços públicos de Paris podem servir para além de suas funções principais sem que isso seja visto como desordem.                                     
            Tudo isso se reflete nos preços e na forma de pagamento para utilização do metrô. Por um bilhete individual, o metrô parisiense é mais caro que o paulista. Em compensação ele é muito mais barato se pago, por exemplo, por semana. O mais interessante é que é possível pagar o metrô de forma a viajar por toda cidade de maneira ilimitada (por semana, por mês ou mesmo por ano). Isso possibilita que o metrô seja muito mais utilizado por cada pessoa. Se você paga para utilizar a vontade é possível pegar o metrô não só para ir ao trabalho todos os dias. Isso é valorizar a circulação para outros fins que não apenas conduzir ao trabalho.
            Por fim, é comum ouvirmos de alguns Brasileiros que vieram a Paris o seguinte comentário em tom depreciativamente racista: “há muitos negros em Paris”. Bem, é verdade há realmente muitos imigrantes e descendentes de imigrantes do continente africano e parte significativa deles são negros. Agora, em Paris não há mais negros que em São Paulo, ao contrário, há menos. Esse comentário, em verdade revela outra coisa. Ele mostra que esse turista Brasileiro vê mais negros em Paris que em sua cidade de origem. Ora, isso por que, por mais que na cidade-luz haja muita exclusão, xenofobia e preconceito racista, se comparado ao Brasil esses defeitos ganham dimensão diminuta. Por mais que os afro-descendentes ocupem em Paris os empregos menos desejados (da mesma forma que em São Paulo) a exclusão social dessas pessoas em Paris não as rebaixou ao ponto da invisibilidade completa.
            Mas bem, para além da circulação no subsolo da cidade é preciso veremos a superfície. Parece que em cada quarteirão há uma construção monumental. Mencionarei especialmente duas delas que no fundo são muito semelhantes. Refiro-me ao Arc de Triomphe e ao Panthéon.      
Arc de Triomphe vu de la place Charles de Gaulle
            Bem, para quem não conhece, o Arc de Triomphe é um monumento que fica no início da Avenue des Champs Elysees. Ele abriga os escudos das principais vitórias do exército francês, bem como o Tombe du Soldat Inconnu. O conjunto de vitórias eternizadas pelos escudos dourados no chão, em baixo do arco, revela uma dicotomia nos feitos do exercito francês. Basta observar que, ao lado do escudo que glorifica os mortos na resistência francesa contra a invasão nazista, se encontra o escudo que honra os franceses que morreram nas guerras da década de 50 no norte da áfrica. Duas lutas, uma pela libertação e outra pela dominação. Poderíamos distribuir todos os escudos dourados do arco nessas duas categorias. No fundo, o que a visita a esse monumento revela é que toda grandiosidade que vemos do topo do Arc de Triomphe irradia dessa dicotomia entre se libertar e dominar; dicotomia essa que por vezes parece perturbadoramente complementar.
Panthéon
            Já o Panthéon é uma construção de porte muito maior. O monumento já foi alvo de grande disputa para determinar sua vocação. Construído inicialmente como monumento religioso em glória de Sainte Geneviève (Padroeira de Paris), hoje o Panthéon é uma espécie de cripta pública para franceses ilustres. Estão enterrados lá uma quantidade enorme de pessoas, mas entre os mais conhecidos estão: Victor Hugo, Émile Zola, Jean-Jaques Rousseau, Voltaire, Jean Jaurès, Perre e Marie Curie ...
            No andar térreo do Panthéon o que mais chama atenção é o enorme pendulo colocado em baixo da principal cúpula do prédio, la pendulede Foucault. O pendulo é um experimento de Jean Bernard Léon Foucault que comprova a movimentação da terra. Colocar esse experimento no centro do Panthéon é sem dúvida um símbolo do avanço da ciência nos espaços anteriormente pertencentes à religião. A cúpula onde o pêndulo encontra-se é suportada por 4 colunas. Também não é por acaso que na base de cada uma dessas colunas encontre-se uma estátua em homenagem da revolução francesa e a pensadores do iluminismo que inspiraram ou fizeram a revolução como Diderot e Rousseau. Não quero comentar aqui o aparente culto francês à revolução, mas o que esse conjunto de estátuas denota é exatamente a vitória da revolução enquanto transformação no pensamento, que passa a irradiar sua luz para dentro dos espaços fechados da religião. É então o iluminismo que sustenta o pendule de Foucault dentro da construção que, em sua origem, deveria ser um tributo a Sainte Geneviève.   
Tombe de Voltaire
            Passando ao subsolo do Panthéon, nos deparamos com uma cripta de teto baixo e com iluminação bem reduzida. É o local dos túmulos dos ilustres franceses. É aqui que a pretensão do Panthéon se revela de forma definitiva. Trata-se de um prédio dedicado a pretensão Francesa de ao sepultar homens produzir deuses. Por outro lado, parece igualmente revelador que toda a exaltação das luzes da revolução culmine por sepultá-las na escuridão de uma cripta que lembra o medievo.
            O que vemos então é uma Paris construída de forma extremamente funcional, mas sem o surto higienista estadunidense. Trata-se de uma cidade produto de uma dicotomia complementar entre a libertação e a conquista. Ao mesmo tempo se ergue do túmulo escuro de seus deuses as luzes de um Panthéon. É uma cidade que se funda na materialização da divisão entre luz e sombra.
            É preciso, entretanto não se deixar deslumbrar, pois a pretensão das luzes são sempre totais. Vou deixar então o tema do Espace Dalí em Montmartre para uma próxima postagem. Mas apenas adianto que depois de dias de luz foi preciso procurar o lugar onde os raios se retorcem um pouco para evitar a cegueira branca, que, por se pretender sã e verdadeira, pode ser pior que a negra.



Ivan de Sampaio 


[1] Não sei se a política repressora aos artistas de rua em São Paulo já chegou também nesses músicos.
[2] Isso sempre feito de forma autônoma pelos músicos que sempre colocam sua caixinha para quem quiser contribuir ou vendem seus CDs depois das apresentações que não precisam de autorização do poder público. O Estado se limita a não reprimir os músicos.   
[3] Estação da linha 5 (laranja) de Paris. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Liberdade nos Discursos de Maquiavel


Volto hoje a postar textos aqui para não deixar esse espaço morrer. Publico hoje então um pequeno texto que fiz como um Paper para a disciplina ministrada pelo Prof.Dr. Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros no curso de graduação em filosofia da FFLCH/USP. É um trabalho bem simples, uma primeira leitura da primeira parte dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio do Maquiavel.       
            Sem mais delongas, segue o texto.

A Liberdade nos Discursos de Maquiavel

            Prima facie, é prudente enunciar que Maquiavel em seus Discursos[1] parece não promover um esforço específico no sentido de definir ou delimitar com precisão um conceito para a palavra liberdade. Independentemente disso, é possível observarmos as formas como essa idéia aparece no texto do autor renascentista.
            A primeira imagem que Maquiavel desenha da liberdade em seus Discursos parece traçar uma oposição. A liberdade é tratada como a antítese da dependência. Maquiavel discorre sobre a fundação das cidades, e ao se referir àquelas edificadas por estrangeiros destaca que “ou o são por homens livres, ou que dependem de outrem” [2].
            Nessa distinção, jaz o princípio do argumento que leva muitos a defenderem que em Maquiavel, a liberdade seria fundamentalmente o autogoverno. Por exemplo, para Skinner, em Maquiavel “dizer que uma cidade tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade.” [3] Em seguida, o historiador é ainda mais direto ao afirmar que “a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno.” [4]
            Certamente para Maquiavel o autogoverno faz parte do que ele entende por liberdade, mas isso não deve ser visto como sua definição em si. Essa liberdade da cidade é vista preponderantemente como meio. Para que a cidade possa atingir a grandeza é necessário que, antes de tudo, ela seja livre; ou seja, que seja a responsável por sua própria direção, que se autogoverne.
            O que não se pode excluir, por outro lado, é que essa liberdade enquanto autogoverno diz respeito fundamentalmente à não dominação da cidade por outra, à manutenção da cidade. Mas, Maquiavel não limita seu olhar a análise da cidade em relação às demais cidades, impérios e principados. Os Discursos do filósofo também tratam do âmbito interior da própria cidade, ou seja, da liberdade dos cidadãos, para além da simples liberdade do corpo político.
            Penso que não é possível ainda falarmos propriamente em liberdades individuais, pois, a verdade é que o próprio termo indivíduo ainda não foi cunhado. Maquiavel propriamente não se refere a indivíduos ou sujeitos, antes da modernidade seria impreciso usar esses vocábulos. Mas veremos nos Discursos a referência a cidadãos, a integrantes do corpo político.
            Antes de entrarmos propriamente nas concepções que Maquiavel traz de liberdade dos integrantes do corpo político (ou cidadãos), vejamos alguns contornos da forma como o filósofo renascentista entende que deve se organizar a cidade.
            De maneira geral, N. Maquiavel se utiliza da classificação aristotélica de governo. Para ele há então três formas “puras” e outras três formas “degeneradas” derivadas das anteriores. São elas: “o principado, [que] facilmente se torna tirânico, o optimate [que] com facilidade se torna governo de poucos; o popular [que] sem dificuldade se torna licencioso.” [5]   
            O que pretendo extrair disso é que Maquiavel percebe uma circularidade entre essas formas de governo. Para ele, a degeneração do principado em tirania conduz a cidade a derrubar o tirano e instituir o optimate (ou governo dos melhores), com a corrupção dessa forma em um governo de poucos o povo finda por instituir o governo popular, quando este finalmente se torna licencioso, novamente emerge um príncipe e o ciclo se reinicia.
            Maquiavel entende que essa política circular conduz a cidade à desgraça. “Quase nenhuma república pode ter tanta vida que consiga passar muitas fezes por tais mudanças e continuar em pé.” [6] Nesse sentido, o pensador renascentista defende uma forma mista capaz de contemplar a virtude e combater os vícios dessas três formas aristotélicas.
            Trata-se de um modelo de instituição que seja capaz de gerir as distensões imanentes ao corpo político, que não busque extirpar os interesses divergentes, mas sim que seja capaz de usar dessa aparente belicosidade civil para erguer a grandeza da república. Não se trata de por fim aos confrontos, mas de conduzi-los de modo a nunca permitir que se tornem um flagelo para a cidade inteira.
            É nesse sentido que Maquiavel em seus Discursos não condena, mas louva os tumultos da república romana. Não se trata de aplaudir os tumultos como um fim em si. O que Maquiavel observa é como Roma foi capaz de, a partir dessas distensões entre a plebe e o senado, construir uma república com instituições fortes o bastante para conduzi-la a grandeza que conquistou. Foi então a virtu romana em lidar com seus conflitos que ergueram os alicerces de sua grandiosidade.
            Nicolau Maquiavel entende que “em toda república há dois humores diferentes, o do povo e dos grandes.” [7] Fato é que, o filósofo renascentista entende também que “todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião” [8] desses humores. Nesse sentido, me parece que a liberdade dos cidadãos em Maquiavel não emana da paz de uma forma “pura” de governo, mas sim da gestão da guerra contínua dos interesses divergentes.
            Qualquer das formas ditas “puras” finda por tentar se impor. A forma mista que Roma construiu era capaz de contemplar em si todos esses humores, seja no senado (os grandes), seja com a presença do tribuno da plebe (o povo).
            Também não é sem razão que Maquiavel acredita competir ao povo a guarda da liberdade, e não aos “grandes”. É o desejo de não ser dominado que fundamenta a maior confiança no povo. A plebe romana não teria condições de usurpar a posse da liberdade para ocupar a posição de dominação. Nesse sentido, a liberdade se encontraria assegurada, vez que sua tutela compete àqueles cujo desejo maior é a ausência da dominação.       
            Essa solução oferecida por Maquiavel consiste então “em organizar as leis relativas à constituição de modo a produzir uma relação de equilíbrio tenso entre essas forças sociais opostas.” [9] O que é preciso, entretanto ter claro é que esse equilíbrio tenso diz respeito preponderantemente a uma liberdade interna na cidade, ou seja, à liberdade dos integrantes do corpo político, dos cidadãos. Não devemos confundir isso com a liberdade externa, ou liberdade do corpo político, da cidade.
            A partir dessa forma mista de governo Romana, louvada por Maquiavel, vemos que a liberdade dos cidadãos se constitui fundamentalmente enquanto obediência a lei. É “a lei que torna os homens bons” [10]. É o domínio da lei que garante a liberdade interna dos cidadãos.
            Dessa maneira, compete às instituições se aprimorarem na gestão dos conflitos para tirar deles a boa lei, a lei da liberdade. Nesse sentido, Maquiavel chega a defender a necessidade, por exemplo, da possibilidade de acusações públicas para que se mantenha a ordem da república[11]. Trata-se de um meio de gerir conflitos. As acusações permitem tanto intimidar aqueles que poderiam atentar contra a cidade, como assegura que a ira pública seja canalizada de forma segura, sem que o crime de um possa representar a ruína da república.
            Veja que a preocupação de Maquiavel não é necessariamente com a justiça das decisões nos tribunais de acusação pública. Sua preocupação é com a manutenção da ordem.

“Se um cidadão é punido ordinariamente, ainda que de modo injusto, segue-se pouca ou nenhuma desordem na república; pois a execução não é feita com forças privadas e forças estrangeiras, que são as que arruínam a vida livre, mas sim com forças e ordens públicas, dentro de seus próprios termos, não se ultrapassando o limite além do qual se arruína a república.” [12]                                                                                                                                               
           
            O caso das acusações é assim um bom exemplo trazido por Maquiavel de como gerir os conflitos no interior da república, de modo a assegurar meios seguros, institucionais, onde é possível liberar as paixões, a lascívia, sem colocar em risco a república.
            A liberdade pode então ser vista, primeiro como uma liberdade externa, uma liberdade do corpo político que consiste fundamentalmente em não dependência, em autogoverno. Além disso, é preciso também observar em Maquiavel a liberdade interna, a liberdade dos cidadãos, que é construída a partir da obediência à lei, mas requer um aparato institucional capaz de contemplar a tensão permanente entre os grupos. Essa liberdade dos cidadãos é então construída a partir da luta perpétua contra a tirania que ao mesmo tempo tenciona e mantém a ordem.  


Ivan de Sampaio 
   


[1] MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Editora Martins Fontes. São Paulo/SP. 2007.  
[2] Ibidem. P. 09
[3] SKINNER, Quentin. Maquiavel. Editora Brasiliense. São Paulo/SP. 1988. P. 84. 
[4] Ibidem.
[5] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P.14.
[6]  Ibidem. P. 17. 
[7] Ibidem. P. 22. 
[8] Ibidem.
[9] SKINNER, Quentin. Op. Cit. P. 103.
[10] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P.20.
[11] Cf. Ibidem. P. 33/36.  
[12] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P. 34.