Acredito que seja de conhecimento de
todos que, por iniciativa da direção da faculdade de Direito da PUC/SP, o
Conselho da Faculdade aprovou a elevação da média de aprovação no curso de 05
para 07 a partir do ano de 2012.
O argumento principal utilizado pela
direção da faculdade para justificar essa medida foi a queda do desempenho da
PUC/SP em exames como o ENADE e a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Independente das críticas cabíveis
tanto a esses exames em si quanto a lógica de avaliar a qualidade do curso com
base nessas provas; fato é que a queda no desempenho da PUC/SP nesses testes passou
a se manifestar a partir do ano de 2007. Curiosamente esse foi também o ano em
que se começou a sentir os efeitos concretos da Maximização dos contratos do
professores promovida pela intervenção da Igreja e acatada, passivamente, por
essa direção da faculdade de direito que se limitou a “negociar” com a Fundação
São Paulo.
Ainda assim a direção da faculdade
de Direito tem se recusado a discutir publicamente questões como a da
maximização dos contratos de trabalho dos professores, dentre outras que
acreditamos poderem explicar o porquê da piora no nível do nosso curso de
Direito.
Visto retrospectivamente acredito
podemos afirmar que a aprovação da média 07 tem um significado estritamente
simbólico nessa conjuntura. A medida em si é incapaz de solucionar os problemas
do curso, fundamentalmente por que a origem da problemática é diversa. Sendo
assim, o aumento da media de aprovação não passa de uma medida para dar uma
reposta da direção à piora do curso, não com o real objetivo de resolver o
problema, mas de esvaziar a eventual pressão política em torno da questão e
desloca o foco da problemática. É uma espécie de medida de engodo, de álibi,
que exonera de culpa a instituição (e a direção) e coloca os estudantes como
únicos culpados pela piora do curso de graduação.
Acredito tratar-se no caso da média
07 de evidente atuação simbólica da direção da faculdade, onde há uma
“tentativa de dar a aparência de solução dos respectivos problemas” e que finda
por “não apenas deixar os problemas sem solução, mas, além disso, obstruir o
caminho para que eles sejam resolvidos.” [1]
Nesse ínterim, a maximização galopa
nas costas dos professores; a pesquisa é cada vez mais sucateada e
desvalorizada e mesmo seu espaço curricular é atacado - basta ver a forma como
está sendo realizada a monografia de conclusão de curso com apenas um semestre
previsto na estrutura curricular. Todos os espaços extra-aulas têm sofrido
constrição desde 2007, a própria extensão universitária dia a dia desaparece
das discussões institucionais. A situação tem chegado ao pondo de professores
pedirem exoneração da PUC e acusar a Fundação São Paulo de estar praticando
“demissão indireta” (Palavras do Prof. Paulo A. Garrido de Paula ao “se demitir”
do Curso de Direito da PUC/SP).
Ao questionarmos a direção da
faculdade sobre esses fatos, tudo que o ilustre diretor foi capaz de nos
responder foi que “estamos em processo de esclarecimentos perante a Fundação São
Paulo”. Já perante o pedido de audiência pública subscrito por mais de 1600
estudantes, esse mesmo diretor foi contundente ao bradar: “Indefiro !” Tudo
isso ainda no primeiro semestre.
Parece-nos absurdo que a direção da
faculdade, diante desse quadro calamitoso, insista em falar grosso com os estudantes
e fino com a Fundação São Paulo. Temos do nosso lado a história da PUC, os direitos dos professores e a absoluta
ilegalidade de todo esse processo de maximização engendrado pela Fundação São
Paulo. Já está na hora de as instituições da PUC se oporem a esses arbítrios
externos que vem atacando nossa universidade.
A única atitude mais contundente
tomada pela direção da faculdade se deu quando a Fundação São Paulo tentou
intervir diretamente nos concursos de professores determinando que os mesmos
fossem suspensos. Só nesse momento a direção esboçou alguma reação. Mas o
episódio serve mesmo para ilustrar o quanto a Fundação tem se mostrado
confortável em intervir em tudo, sem o menor pudor de atropelar qualquer
instância da universidade. Ainda assim, a direção da faculdade está tão
distante dos estudantes que nem se preocupou em informar a comunidade da suspensão
desses concursos, bem como os motivos para tal.
Diante desses fatos, insistimos em
afirmar a importância de uma audiência pública, não para apontar dedos e nos
dividirmos, mas para que a direção da faculdade, juntamente com o corpo
discente e docente possa se unir em prol da defesa da nossa autonomia. É
preciso que a direção da faculdade de direito perceba que não são os estudantes
os culpados pelos atuais problemas puquianos, mas sim a atuação indevida e
ilegítima de uma entidade mantenedora que a muito vem extrapolando suas funções
e se intrometendo em questões que são de competência da comunidade puquiana.
Por isso, julgamos premente a
necessidade de uma audiência pública para conseguirmos, juntos, correr em
defesa do nosso curso e da nossa universidade.
Nessa postagem quero fazer algumas reflexões sobre
questões que enunciei quando comentei o dia do orgulho heterossexual na postagem
O Orgulho que Serve ao Preconceito.Estou
mais uma vez me aventurando nesse tema que tenho pouco acúmulo. Por essa razão,
o que pretendo aqui é apenas levantar algumas questões que possam contribuir
para a reflexão do tema.
Antes de entrar
propriamente no tema da produção de identidade de gênero em nosso tempo
gostaria de reconstruir, de forma bastante simplificada, uma tese existencialista.
O existencialismo de Sartre tem como
um de seus fundamentos a tese de que “a existência humana precede sua essência.”
Nesse ponto Sartre parte da leitura
que Heidegger faz da modernidade.
Para Heidegger, o início da
modernidade está no pensamento de Descartes.
Heidegger identifica no cogito cartesiano o passo primeiro do
movimento moderno do homem tornando-se senhor de si mesmo.
Ao observarmos no pensamento teológico a concepção de um
deus criador do mundo, vemos ali a gênese da concepção moderna de natureza
humana. Se uma entidade metafísica superior cria o homem, isso significa que,
antes do ato criador, existia, no gênio dessa entidade, a idéia, a essência do
homem. Nessa concepção, a essência do homem seria anterior a sua existência, e
mesmo independente dela. Logo, o homem já surgiria no mundo com uma quantidade
de predicados estabelecidos por Deus enquanto a essência do seu ser.
A partir de Descartes
Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade
e emerge o cogito cartesiano, a
verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e
não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da
representação, ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[1],
assegura a si mesmo enquanto aquele que é.
Em especial a partir do séc. XVIII, o ateísmo filosófico
suprime a idéia de Deus. Mas, a idéia de essência humana se mantém agora
denominada de natureza humana. O homem seria assim o mero representante
individual de um conceito universal pré-determinado. Ao mesmo tempo em que o
humanismo de Kant parece colocar o
homem no centro do seu sistema filosófico, a abordagem antropológica formula a
natureza universal desse homem de forma que o homem é um fim em si e esse fim
pode ser visto no âmbito dessa universalidade humana que é a natureza própria
do homem.
Depois desse percurso podemos afirmar que o existencialismo
colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto
central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência,
ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência,
sua própria natureza seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos
explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é
uma construção do próprio homem. Para Sartre
o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas
como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”
(J-P. Sartre). A isso Sartre chama
subjetividade.
Veja que essa subjetividade não se confunde com uma
individualidade. A subjetividade sartriana se dá numa relação de
responsabilidade do homem pelo mundo, é fruto de uma vontade. Essa vontade não
é uma escolha individual, mas uma capacidade criadora.
Feito esse longo preparo posso agora falar propriamente
da identidade de gênero. De forma geral, na nossa cultura o que se busca fazer
é ligar a identidade de gênero a um sexo biológico. Ou seja, se atribui ao
homem uma “natureza” masculina e à mulher uma “natureza” feminina. O ponto que
quero destacar é que a partir da leitura existencialista que mencionei, devemos
ver a existência como anterior a essência. Ou seja, não devemos conceber uma
natureza a priori que pode ser identificada
com um sexo específico.
Se pensarmos no âmbito próprio da sexualidade isso fica
um pouco mais evidente. Essa divisão estabelecida entre uma natureza feminina e
uma masculina repercute em determinada forma do uso dos prazeres que se julga “natural”
a cada corpo. Somando-se a isso a formulação de que, igualmente por natureza, o
sexo seria mera função reprodutora, vemos a constituição aqui de uma essência,
de uma natureza a posterior. Quer dizer, os corpos humanos têm a capacidade de
obtenção de prazer de inúmeras maneiras, mas a nossa cultura formulou um núcleo
binário que divide o uso do corpo e dos prazeres entre homens e mulheres. Sendo
assim, vemos que o que se chama de natural, ou de essência para os usos dos
prazeres é na realidade uma criação humana de subjetividade.
Dessa forma as identidades de gênero são formas de
subjetividade criadas pelo homem e atribuídas enquanto essências, enquanto
natureza de cada sexo. O que quero apontar é que nada mais artificial do que
isso que chamamos de natural.
Precisamos perceber que em nossa sociedade contemporânea não
temos escolhas de subjetivação, podemos ter escolhas de âmbito individual
menores, mas no âmbito da nossa constituição enquanto sujeitos vivemos em
tempos de normalização como diria Foucault.
Isso significa que pelos atuais mecanismos de poder nossa subjetividade é
imposta. É precisamente por isso que falamos em orientação sexual e não opção.
Ou seja, essas essências masculinas e femininas são impostas a cada um de
acordo com um sexo, com a justificativa de ser isso natural, inato a cada sexo.
Somos então normalizados dentro de alguns parâmetros pelos
quais nos são impostos elementos de subjetividade que constituem nossa
identidade. Sendo assim, é como se nós, heterossexuais, fossemos condicionados
a determinados prazeres de forma a ser quase inconcebível a atração sexual fora
dos parâmetros dessa identidade. Os homossexuais são uma primeira ruptura com a
divisão binária que atribui uma natureza masculina ou feminina a cada sexo.
Dessa forma os gays e lésbicas conseguem superar essa primeira formulação, mas
inda estão delimitados pela constituição de uma identidade. Da mesma forma que
os heterossexuais, os homossexuais são “normalizados” e esse processo os constitui
enquanto sujeitos titulares de uma identidade imposta.
De certa maneira tivemos alguns momentos em que essas
formas de subjetividade da sexualidade e de gênero foram questionadas. Podemos
mencionar tanto os movimentos feministas
quando as lutas LGBTT. O ponto é que
tanto a luta por igualdade quanto as lutas por reconhecimento apenas ampliaram
ou diversificaram as possibilidades da produção de identidades de gênero. Esses
movimentos conseguiram colocar em cheque as concepções de identidades de gênero
naturais ou de essências de um sexo masculino e feminino. Eles também romperam
com a imposição de usos da sexualidade por cada sexo, mostrando que os corpos
masculinos e femininos podem ter prazer fora dos usos ditos naturais.
Ao dividir o mundo em um gênero masculino e um feminino,
os gays e lésbicas seriam vistos apenas como indivíduos com “essências trocadas”.
Mas, o que os movimentos LGBTT conseguiram,
foi mostrar que eles têm uma identidade autônoma, fora dessa separação binária
entre masculino e feminino. Os movimentos feministas por sua vez colocaram em cheque a própria rigidez dessa
separação de características femininas e masculinas.
Acredito, por outro lado, que ainda assim não se conseguiu
romper com a lógica da nossa sociedade de normalização. Mesmo entre os gays e
lésbicas ainda vemos a formação de identidades próprias que se constituem
também enquanto uma orientação, uma imposição de subjetividade. O que vemos é
apenas surgir novas possibilidades de identidades ou a mera possibilidade de
não se vincular uma identidade de gênero a um sexo específico.
Creio que o caminho para uma efetiva liberdade sexual
deve ir além. Seria preciso romper com a própria constituição de identidades
sexuais. Precisaríamos sai da lógica da normalização e nos tornar senhores de
nossa própria subjetividade. Nesse sentido não mais produziríamos um masculino
e um feminino, os sexos biológicos não teriam o condão de orientar a sexualidade
e o desejo em nenhum sentido. Não teria significado dividir o mundo em
heterossexual, homossexual, bissexual... Se não formulássemos essas identidades
a atração sexual não poderia ser usada para definir os indivíduos, em verdade
essa atração nem mais obedeceria a critérios definidos. Nesse sentido os desejos
teriam como objeto pessoas, e não homens e mulheres.
Obviamente isso não é algo que possamos simplesmente
escolher romper com um mero ato volitivo. Mas acredito que o primeiro passo é
conseguirmos ver na nossa própria identidade de gênero e sexualidade uma forma
de imposição de subjetividade que de certa forma nos impede de sermos senhores
de nós mesmos.
Vou encerar essa postagem por aqui. Não consegui ser
muito claro, mas a própria proposta desse texto era apenas fazer um rascunho
dessa reflexão.
Ivan de Sampaio
[1] Em Descartes Deus ainda perece
como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua
alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue Deus
para explicar a relação corpo/alma, deus aparece já de forma indireta. A
verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação
verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.
"Numa universidade o que deve
prevalecer é o aspecto educacional, mesmo quando a juventude conteste, como
acontece em todo o mundo, enfrentando determinadas normas estabelecidas, ao
educador compete atuar de forma pedagógica e parece que só desta forma realmente
podemos contribuir para o crescimento e para afirmação de nossa juventude e não
é pela repressão que vai se alcançar estes objetivos."(Nadir Kfouri)
Ontem, quando voltava para casa, recebi uma mensagem no
meu celular de uma amiga, perguntando a respeito da suspensão das atividades
acadêmicas na PUC/SP nessa sexta-feira. No momento não tinha conhecimento do
fato, mas supus que a interrupção das aulas tivesse sido decretada, em decorrência
da perda (no dia 13 de setembro) da grande Professora e Reitora (entre os anos
de 1976 e 1984), Nadir Kfouri. Seria bastante natural que a PUC/SP suspendesse
suas atividades para cultivar um pouco a memória desta que foi responsável
pelos atos mais significativos de toda a história da PUC/SP.
Ao chegar em casa, fui verificar a informação, e qual não
foi a surpresa ao constatar que o motivo da suspensão das atividades na PUC/SP
era por razão diametralmente oposta.
Estava sendo organizado para sexta-feira à noite na
PUC/SP um festival de música que
tinha como pauta a questão política da legalização das drogas. Diante disso,
para evitar que tal festival se realizasse, o Reitor Dirceu de Mello decretou,
não apenas a suspensão das atividades, como também proibiu a circulação de
qualquer pessoa no campus Monte Alegre da PUC/SP. Vide ato do reitor nº 127/2011.
Dona Nadir, juntamente com Dom Paulo Evaristo Arns, são
as figuras que representam o que a PUC/SP foi durante muitos anos. O lugar da
inquietação, da resistência, da ousadia, da insubordinação. Essa reitora era o
retrato da excelência acadêmica da PUC/SP, ao evidenciar que o espírito da
liberdade é o único sustentáculo efetivo do conhecimento. Para Nadir Kfouri a
liberdade de pensamento deve ser precedida pela liberdade de ação, sem a qual o
exercício do pensar só pode ser ilusoriamente livre.
Estamos falando da Reitora que enfrentou a ditadura
civil-militar brasileira por diversas vezes. Um enfretamento que se estendia
desde a contratação de professores expulsos das universidades públicas, até a luta
direta contra o regime, depois da invasão pelas tropas do exército desse mesmo
campus da PUC/SP hoje sitiado.
Essa mulher, que foi a primeira mulher reitora de uma
universidade católica no mundo, escolhida pelo voto direto, fundou juntamente
com Dom Paulo a excelência acadêmica puquiana ao transformar a universidade na “Cidadela
da Resistência”. Foi na ousadia que a PUC/SP se agigantou e é a sua atual subserviência
e domesticação que a encaminha para a mediocridade.
Pois bem, o fechamento das portas da PUC/SP no dia de
hoje não representam em nada a lembrança dessa extraordinária mulher que
lamentavelmente nos deixou. Muito pelo contrário. Fechar a PUC hoje foi a evidência
final de que essa memória, que construiu a universidade, se apagou.
Retirar da PUC/SP a sua liberdade de contestar a ordem
posta é a negação da “cidadela da resistência”. Haverá aqueles que virão ainda
com os argumentos indigestos de que “hoje vivemos numa democracia”, “não
estamos mais diante de um regime ditatorial”, “há meios e locais adequados para
a contestação”. A estes, poderia apenas responder com uma provocação: Agamben explica. Mas, como credito que
os únicos que entenderiam a provocação seriam aqueles que não precisariam ouvi-la,
vou por outro caminho.
“A contradição entre a injustiça
real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra
pertence ao processo, à dialética da realização do direito, que é uma luta
constante (...). Essa luta faz parte do direito, porque o direito não é uma
‘coisa’ fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação
permanente.” [1]
Acredito que o mínimo que se espera de alguém que se
julgue defensor da democracia e que proteja o direito de expressão das opiniões
contrárias as suas da mesma forma que defende seu próprio direito de proferir o
que pensa. Não há democracia de mão única, nem de discurso único. Sobre “o
lugar”, bem, a universidade é o loco
de contestação por excelência, e mais, a democracia não tem lugar definido, ela
não pode ser trancafiada em uma sala ou disciplinada por ritos e formalidades
constritoras. As formas deveriam garantir o viver em liberdade, se não servem a
isso, são as formas mesmas que devem ser abolidas. De toda maneira, já estou
fugindo do assunto.
O ponto é que a PUC/SP esqueceu-se desse passado que é o
responsável por toda sua grandeza. Recusou-se a interromper as atividades para
lembrar o legado de dona Nadir, mas não titubeou em sitiar a universidade para
negar sua história. Nem é surpresa que na PUC/SP tenha passado em branco os 90
anos de Dom Paulo, que deveriam ter sido celebrados também essa semana.
O que vemos hoje é a morte de uma PUC/SP que nem sei se
ainda merece o título de universidade. A transformação de um loco de ousadia, numa escola de adestramento.
Diante da mera possibilidade de acontecer na PUC/SP algo que ponha em cheque o status quo das coisas, o reitor manda
sitiar a “cidadela da resistência” da mesma forma que fez Erasmo Dias em 1977.
“(...) ensinar é um ato criador, um
ato crítico e não mecânico” [2]
Os fundamentos são quase os mesmos dos milicos, os meios
igualmente autoritários. Se no passado o legítimo eram os decretos e atos
institucionais, a reitoria hoje os chama de “atos do reitor”. Se a PUC/SP é
privada na hora de cobrar suas altíssimas mensalidades, é, em contra partida,
pública no momento que o reitor acha conveniente aplicar regramentos estaduais
de universidades estatais para proibir a cervejinha dos estudantes. Se a PUC/SP
é democrática nas suas propagandas para angariar alunos, é profundamente autoritária
para impedir a própria organização estudantil. Se a PUC/SP brada, em toda sua
propaganda interna e externa, um “orgulho de ser PUC”, cabe a nós hoje
perguntar qual é o motivo desse orgulho.
Fato é que hoje os portões da PUC/SP estão fechados.
Fechados para garantir que o conhecimento e o espírito da ousadia não entrem na
universidade, bem como para assegurar que a mediocridade continue confortavelmente
instalada em seu interior. Esse é o “orgulho de ser PUC”, uma universidade que
deprecia sua história para maquiar sua mediocridade.
Hoje, dia em que comemoramos nossa “independência”, vou falar sobre um tema bastante discutido. Quero refletir um pouco sobre idéia
de “Estado laico”.
Ultimamente essa expressão tem sido
evocada, fundamentalmente para se opor a invasão religiosa na política (em
especial no congresso nacional). Esse primeiro significado da expressão decorre
fundamentalmente da leitura do art. 19, inciso I[1]
da Constituição Federal. Nesse sentido tendo a defender veementemente as
iniciativas dos movimentos que defender um Estado laico. Os grupos religiosos que se projetam no âmbito eleitoral,
em sua maioria, se ligam a pautas extremamente conservadoras e por vezes
discriminatórias. As bancadas cristãs de forma geral tendem mesmo a buscar
impor práticas provenientes de sua moral religiosa por força de lei.
Isso é fruto da própria doutrina
Cristã, que, por mais que tenha seu ponto auto na idéia de identidade com o
outro[2],
se desenvolveu enquanto uma doutrina universal que tem sérias dificuldades em
lidar com a diferença. A pretensão expansionista cristã pode ser vista em inúmeras
de suas práticas, a título de exemplo podemos mencionar duas mais conhecidas: a
catequese e a formação e envio de missionários para os quatro cantos do mundo.
Toda a disputa por espaço dos cristãos é “justificada” com o objetivo
aparentemente inofensivo de “levar a palavra de Deus”.
A questão é que, a certeza sobre a verdade
desse grupo os leva a práticas impositivas; desde as fogueiras da inquisição
(quando os cristãos comandavam o Estado) até a formulação legislativa no
momento presente. Toda essa pretensão de verdade absoluta e universalização
religiosa leva-me a apoiar o movimento que defende um Estado Laico.
Apesar da amplitude do debate, ao
tratarmos o termo Estado Laico enquanto uma forma de “purificar’ o estado das
pretensões de imposição de uma crença ou uma moral proveniente de um credo,
penso ser necessário sairmos dessas discussões mais pontuais. O que gostaria de
discutir hoje é um ponto bastante diferente desse.
O que pretendo é analisar mais de
perto não as formas contemporâneas de tentar tirar a igreja do Estado, mas sim,
examinar como, em primeiro lugar, a religião (em especial o cristianismo, mas
também, em menor grau, o judaísmo) conseguiu se ligar tão profundamente ao ente
estatal. A impressão que tenho é que isso se deu não a partir do ente estatal
propriamente, mas por meio do desenvolvimento das práticas de governo[4].
Voltemos-nos então um pouco para
observar como foi possível que as práticas de governo fossem paulatinamente
conjuradas em uma esfera única estatal.
De acordo com o pensamento do filósofo
francês Michel Foucault, o objeto
propriamente de governo são pessoas e coisas, mais ainda, a relação das pessoas
e das coisas entre si. Nesse sentido, Focault nos aponta que a idéia de um
governo nesses moldes se distingue muito da matriz grega que é usualmente
referência em matéria de filosofia política. “No pensamento grego o objetivo do
governo seria a cidade, não os homens.” [5].
Dessa forma, ao governar a polis, os homens seriam governados apenas de maneira
indireta. Esse governo do qual falamos, que teria como objeto a conduta em si
dos homens, parece ter sua origem muito mais marcante no pensamento
judaico-cristão. Será na pastoral cristã que Foucault encontrará primeiro o
sentido de “governar” que desenvolvemos aqui. Falamos do “poder pastoral”.
De maneira sintética, podemos
caracterizar o “poder pastoral” como uma forma de poder que não se exerce sobre
um território definido, mas sim sobre um grupo, sobre uma multiplicidade de
indivíduos em movimento. Essa forma de poder é também individualizante, o
pastor não abandona nenhuma de suas ovelhas, e, mesmo que uma delas venha a se
desgarrar, ele não a deixará para traz. Além disso, a finalidade desse “poder
pastoral” é justamente a manutenção do grupo e sua segura condução ao seu
destino. “Como um pastor cuida do seu rebanho, quando esta no meio de suas
ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos
os lugares por onde se dispersam em um dia de nuvens e de escuridão” [6]
Claro que aqui há uma matriz
fortemente teológica, de concepção de um Deus (judaico-cristão) que não está
ligado a um território específico. É um Deus “móvel” que protege um povo
escolhido (hebreus) ou toda humanidade (universalismo cristão) onde quer que se
encontre. Além disso, é também um Deus que conduz, seja à terra prometida por
meio de seu pastor (Moises) seja à salvação por meio do sangue de seu único
filho (Cristo).
Pois bem, mas o aspecto a ser
destacado de tudo isso é precisamente o caráter de “condução” desse poder
pastoral, seja dos homens, das coisas ou das condutas. Se pensarmos no governo
das almas (regimen animarum) a
intervenção da pastoral se fortalecerá precisamente nas condutas, na tentativa
de impedir o pecado, de dirigir às condutas dentro dos padrões do bom e do
justo. De forma ampla, poderíamos falar em uma condução da vida, em uma gestão
da vida. O grande objetivo dessa condução será assim atingir um estado de
salvação para o rebanho inteiro e para cada indivíduo em particular.
Justamente por ser a salvação o
grande objetivo do pastoreio, a relação entre o pastor e o rebanho é uma
relação de obediência para com o pastor. Também é o pastor o conhecedor da lei
e dos desígnios divinos, o que reforça a necessidade de obediência, vez que o
discurso do pastor será necessariamente o discurso verdadeiro fruto da vontade
de Deus. A obediência cristã será assim total para com o pastor. Seguir o
pastor é simplesmente cumprir o desígnio de Deus.
Diante disso, a responsabilidade do
pastor será apontada como de dois tipos: distributiva e analítica. Distributiva
por que “o pastor deve assegurar a salvação de todos, mas tal função não pode
acarretar o descuido em relação a cada uma das ovelhas”. [7] A responsabilidade é também
analítica, pois o pastor deverá responder por todos os atos praticados por cada
um dos indivíduos sob sua guarda. Logo, a salvação do pastor é a salvação de
seu rebanho e assim como o “cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo”, o
pastor deve estar disposto a se sacrificar pela salvação do rebanho.
No fundo, o pastoreio é um cuidado,
cuidado quase paternal. Mas é também um cuidado que não tem como fim a
autonomia dos sujeitos, mas sua obediência. E o fim dessa obediência é a
própria sujeição, a mortificação da vontade do sujeito, pois o que conduz os
homens deve ser a vontade de Deus. “Liberdade é obedecer a Deus” [8].
Cabe assim ao pastor dirigir a própria consciência do rebanho.
Pois bem, mas tudo isso parece
operar no âmbito da religião. Como se dá então a passagem desse governo das
almas para a política propriamente?
Inicialmente a religião passa a se
aproximar mais da vida material e isso já projeta, de certa forma, essa lógica
da pastoral cristã para outros âmbitos da vida. Mas a racionalidade política
que Foucault aponta como a ponte da pastoral cristã para a política é a idéia
tomista de que “o rei governa”. A figura do monarca passa paulatinamente a ser
“divinizada” e o governo do rei deve então ser espelhado no governo da natureza
sobre vida, do pastor sobre o rebanho, do pai sobre a família, de Deus sobre os
homens.
Veja que assim Foucault consegue,
não só apontar a antecedência do governo em relação à instituição própria da
soberania, mas também permite a ele indicar que foram as próprias práticas de
governo que paulatinamente se “entificaram” na criação do Estado soberano.
O que acredito que podemos perceber
de tudo isso é que o pensamento religioso não está presente apenas nas disputas
políticas pontuais como as questões que indiquei no início dessa postagem. Creio
que a própria forma do exercício dos poderes de governo tem, em si, uma matriz
fortemente teológica. A própria idéia de que os homens precisam ser governados,
de que um líder é necessário pode ser vista como uma releitura e uma recriação
do mito do messias do salvador.
Penso assim que precisamos lutar por
uma laicidade muito mais ampla. Não basta tentar fazer com que o Estado seja laico,
é preciso que ele seja superado enquanto ente e enquanto prática para que
possamos tentar formular a política de forma minimamente livre da fé.
Feliz dia da Independência para
tod@s!
Ivan
de Sampaio
[1] Art. 19. É vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos
ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles
ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
da lei, a colaboração de interesse público;
[2] “Amarás o teu próximo como a ti
mesmo” (Mateus 22,39)
[3] Particularmente tentar incluir
na ritualística legislativa a leitura da bíblia chega a ser engraçado.
Honestamente, acredito que se os cristãos realmente lessem a bíblia de forma
sistemática, dificilmente manteria sua fé. Pra mim, em particular, a bíblia foi
um dos livros que mais ajudou a hoje afirmar que sou ateu.
[4] Para falar disso usarei um pouco
minha monografia de conclusão do curso de direito da PUC/SP. Especificamente um
tópico chamado: “O poder que conduz os rebanhos” do Capítulo III.
[5] FONSECA, Marcio Alves. Michel
Foucault e o Direito. P. 219.
[6]BIBLIA, Ezequiel. Português.
Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo/SP. 1985. Cap. 34 Vers.
12.
[7] FONSECA, Marcio Alves. Michel
Foucault e o Direito. P. 220.
[8] Papa Bento XVI em sua homilia na
missa celebrada dia 15 de abril de 2010 na capela paulina no Vaticano.
No mês passado fiz uma postagem sobre o projeto de lei
municipal 294/2005 que instituía em São Paulo o “Dia do Orgulho Heterossexual”.
Felizmente o prefeito Gilberto Kassab, em um de seus
raríssimos momentos de lucidez, (creio até que tenha sido o único enquanto
prefeito) decidiu vetar o projeto. Realmente foi uma surpresa esse veto vindo
de um prefeito famoso pela truculência. Lembremos penas de um episódio:
De toda forma, publico hoje o texto
do veto aqui, tendo em vista que dificilmente o prefeito Kassab nos dará, em
vida, outro motivo para elogio.
O Marcelo Semer já comentou o veto em seu blog, veja aqui. De forma
que me limitarei a colocar aqui as razões do veto para aqueles que se
interessarem em ler. Não acrescento mais nada também porque creio que estaria
apenas repetindo o que eu mesmo já publiquei na postagem O Orgulho que Serve ao Preconceito, bem como o que outros
companheiros da blogosfera já falaram, como na postagem Orgulho Heterossexualdo blog Janela da Parede Azul mantido por Oscar Santos.
Dessa forma, segue as razões do veto
redigidas pela assessoria jurídica do prefeito.
Ivan de Sampaio
RAZÕES DE VETO
Projeto de Lei nº 294/05
Ofício ATL nº 105, de 30 de agosto de 2011
Senhor Presidente,
Por meio do ofício acima
referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção
cópia autêntica do Projeto de Lei nº 294/05, de autoria do Vereador Carlos
Apolinário, aprovado na sessão de 2 de agosto do corrente ano, que objetiva
dispor sobre a instituição do “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”. De
acordo com o teor da propositura, o “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”, a
ser anualmente comemorado no 3º domingo do mês de dezembro, integrará o
“Calendário Oficial de Datas e Eventos do Município de São Paulo”, devendo o
Poder Executivo envidar esforços no sentido de divulgar a data com o objetivo
de “conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons
costumes” (artigos 1º e 2º). Contudo, considerando que, à
vista das conclusões alcançadas no parecer expendido pela Procuradoria Geral do
Município, acolhida pela Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e na
manifestação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, conforme
restará adiante explicitado, o conteúdo da propositura é materialmente
inconstitucional e ilegal, bem como contraria o interesse público, vejo-me na
contingência de, com fundamento no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do
Município, vetar totalmente o texto assim aprovado.
Referido
projeto de lei, cujo artigo 1º parece tão somente instituir e acrescentar mais
uma data comemorativa ao Calendário de Eventos da Cidade de São Paulo, o que
seria plenamente legítimo, na realidade não se reveste da simplicidade que
aparenta ostentar, circunstância que, por certo, explica a sua enorme
repercussão, majoritariamente negativa, no Brasil e até mesmo na imprensa
internacional, como é o caso, só para exemplificar, das revistas “Forbes” e
“Newsday”, que destacaram a inusitada criação do “Straight Pride Day” em seus
respectivos sites, consoante noticiado no Portal da “Folha.com” em 2 de agosto
de 2011.
Em
princípio, poder-se-ia argumentar que, se a Cidade de São Paulo comemora, como
tantas outras no Brasil e no mundo, o “Dia do Orgulho Gay” (Homossexual),
então, sob o pálio de uma isonomia meramente formal, seria legítimo que ela
igualmente comemorasse o “Dia do Orgulho Heterossexual”, pois dessa forma todas
as preferências, orientações ou tendências sexuais estariam contempladas pelo
legislador no aludido Calendário, confirmando a vocação democrática e
pluralista desta terra paulistana. Essa não é, todavia, a
isonomia de tratamento que o comando contido no artigo 2º do indigitado texto
pareceu querer por evidência, na medida em que ali está prescrito que, vale a
pena repetir, o Poder Executivo Municipal “envidará esforços no sentido de
divulgar a data instituída por esta lei, objetivando conscientizar e estimular
a população a resguardar a moral e os bons costumes”. Como se vê, o dispositivo
expressamente patenteia que o “Dia do Orgulho Heterossexual”, cuja comemoração
anual dar-se-á na semana do natal, estará associado ao resguardo da moral e dos
bons costumes. Logo, não é necessário fazer grande esforço interpretativo para
ler, nas entrelinhas do pretendido preceito, que apenas e tão só a
heterossexualidade deve ser associada à moral e aos bons costumes, indicando,
ao revés, que a homossexualidade seria avessa a essa moral e a esses bons
costumes. Aliás, o texto da “justificativa” que acompanhou o projeto de lei por
ocasião de sua apresentação descreve, em vários trechos, condutas atribuídas
aos homossexuais, todas impregnadas de sentimentos de intolerância com
conotação homofóbica.
Consequentemente,
sob essa perspectiva, caso o Município de São Paulo, por qualquer de seus
órgãos, viesse a dar cumprimento ao mencionado artigo 2º, daí resultaria a
inequívoca mensagem à população em geral no sentido de que a homossexualidade
seria “um modo de ser” supostamente contrário à moral e aos bons costumes, com
isso violando princípios basilares e objetivos fundamentais constitucionalmente
agasalhados, dentre eles o da cidadania, o da dignidade da pessoa humana, o da
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o da redução das
desigualdades sociais, o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e “quaisquer outras formas de discriminação”, e
o da prevalência dos direitos humanos (Constituição da República Federativa do
Brasil, artigo 1º, incisos II e III, artigo 3º, incisos I, III e IV, e artigo
4º, inciso II).
Mas
não é só. A essa desconformidade da proposta legislativa com a Carta Magna
Brasileira, por si só suficiente para impedir a sua conversão em lei, soma-se o
fato de que ela também não está de acordo com o interesse público. Com efeito,
sob a aparência de promover o “orgulho da heterossexualidade” - e aqui se deve
observar que não faz sentido algum “ter” ou “comemorar” o orgulho de pertencer
a uma maioria que não sofre qualquer tipo de discriminação - a carta de lei
vinda à sanção mal disfarça o preconceito contra a homossexualidade, associada,
por inferência (artigo 2º) e consoante se colhe de sua “justificativa”, à falta
de moral e de bons costumes. Assim, ao invés de promover o entendimento das
diferenças e, pois, a paz social, função maior da Política, o projeto de lei
milita a serviço do confronto e do preconceito, razão primeira da sua
contrariedade ao interesse público.
Acerca
do tema, lapidar e percuciente é a abordagem realizada pelo jurista MARCOS
ZILLI, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo - USP e Coordenador da “Coleção Fórum de Direitos
Humanos”, no artigo intitulado “A criação do Dia do Orgulho Hétero Incentiva a
homofobia? - Tolerar, verbo transitivo”, publicado na seção “Tendências/Debates”
do Jornal Folha de S.Paulo, edição do dia 13 de agosto de 2011, do qual, por
pertinente e oportuno, ora se transcreve o seguinte trecho:
“A
expressão “orgulho” (“pride”), estreitamente associada à luta pela conquista da
cidadania plena da chamada comunidade LGBT, representa o contraponto do
sentimento de “vergonha”, que sempre pautou o tratamento opressivo dado à
orientação e à identidade sexual diversa do padrão socialmente aceito. Afinal,
tais comportamentos evocavam a noção de defeito, de modo que deveriam
permanecer ocultos diante do vexame familiar e social que provocavam. A
dignidade humana, como se sabe, é patrimônio que não está restrito a grupos
específicos. No entanto, são justamente as minorias que mais se ressentem do
exercício pleno de seus direitos, já que as sociedades tendem a ditar o seu
ritmo à luz de uma maioria. Fixa-se, então, um padrão comum, e a ele se agrega
o qualificativo da normalidade. A situação se agrava quando a minoria não é
percebida como uma projeção natural da diversidade e da pluralidade humana, mas
como um desvio a ser menosprezado, esquecido ou corrigido. É nesse momento que
se abrem as portas para o exercício diário da intolerância e da violência. A
destinação de datas relacionadas com as minorias é apenas uma das ferramentas
disponíveis no vasto terreno da luta pela efetividade dos direitos humanos. Em
realidade, elas possuem valor meramente simbólico, já que o objetivo é o de
chamar a atenção do grupo social em favor de quem é, diariamente, esquecido no
exercício de seus direitos. Busca-se promover a conscientização de que a
dignidade humana não é monopólio restrito à maioria. Vem daí a consagração dos
dias “da Mulher”, “da “Consciência Negra” e “do Índio”. Nessa perspectiva, a
reserva de uma data especial para a celebração do orgulho dos heterossexuais se
mostra desnecessária, uma vez que não há discriminação por tal condição. Não
são associados à doença ou ao pecado, tampouco são alvo de perseguições no
trabalho, nas escolas ou em outros ambientes sociais. A união heterossexual,
por sua vez, é totalmente amparada pelo Estado e pelo Direito. Além disso, a
iniciativa legislativa propicia uma leitura perigosa, capaz de desvirtuar a
própria dinâmica dos direitos humanos. Com efeito, ao acentuar o vínculo já consolidado
entre “orgulho” e o “padrão socialmente aceito”, a lei cria dificuldades para
que se elimine o estigma da “vergonha” que persegue o movimento oposto. Afinal,
vergonha não emerge do que se mostra normal, mas, sim, do que se qualifica como
anormal. Em verdade, a energia criativa do legislador deveria ser canalizada em
prol de políticas públicas eficientes para o processo de consolidação da
respeitabilidade integral dos direitos humanos. A questão é especialmente
urgente em uma cidade onde são recorrentes os atos de violência racial, étnica,
religiosa, de gênero e de orientação sexual. Experiências frutíferas poderiam
ser alcançadas nos bancos escolares públicos. Leis que se mostrassem
preocupadas com a formação de crianças desprovidas de quaisquer preconceitos já
seriam muito bem-vindas. Afinal, na base da educação dos direitos humanos
repousa o valor-fonte da tolerância. É chegada a hora de aceitarmos tudo o que
não se apresente como espelho.”
Por
derradeiro, impende ressaltar que as políticas públicas encampadas pelo
Município de São Paulo inserem-se no atual contexto nacional e internacional de
reconhecimento e garantia dos direitos das denominadas minorias ou grupos em
situação de vulnerabilidade social (mulheres, negros, nordestinos, crianças,
pessoas com deficiência física, comunidade LGBT, idosos, pessoas em situação de
rua e outros), em perfeita harmonia, aliás, com o disposto no artigo 2º,
“caput” e inciso VIII, da Lei Orgânica da nossa Cidade, segundo o qual a
organização do Município observará, dentre outros princípios e diretrizes, a
garantia de acesso, a todos, de modo justo e igual, sem distinção de origem,
raça, sexo, “orientação sexual”, cor, idade, condição econômica, religião “ou
qualquer outra discriminação”, aos bens, serviços e condições de vida
indispensáveis a uma existência digna. Por óbvio, para o alcance desse
desiderato, no caso dessas minorias, faz-se necessário lançar mão da figura da
“discriminação positiva”, calcada na noção aristotélica de isonomia, qual seja,
tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais.
Com
esse propósito, cabe destacar, pela pertinência com o assunto aqui enfocado, as
políticas públicas voltadas à específica proteção do segmento de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT, como a adoção, dentre outras,
das seguintes medidas: a) criação da Secretaria Municipal de Participação e
Parceria, cuja Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual - CADS tem por
atribuição atender as necessidades específicas de referido segmento, visando a
promoção da sua cidadania e o combate a todas as formas de discriminação e de
preconceito; b) instituição do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade
Sexual, órgão colegiado, de caráter consultivo, composto por membros da
sociedade civil e Poder Público Municipal, com competência para propor o
desenvolvimento de atividades que contribuam para a efetiva integração
cultural, econômica, social e política do segmento LGBT; c) edição do Decreto
nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010, dispondo sobre a inclusão e uso do nome
social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais relativos a
serviços públicos prestados no âmbito da Administração Direta e Indireta; e d)
envio, à Câmara Municipal, do Projeto de Lei nº 359/07, estabelecendo medidas
destinadas ao combate de toda e qualquer forma de discriminação por orientação
sexual no Município de São Paulo. Por conseguinte, claro está
que o projeto de lei em relevo, mormente em face do seu conteúdo
discriminatório, efetivamente não se coaduna com as ações governamentais que
vêm sendo implementadas no âmbito da Administração Pública do Município de São
Paulo, direcionadas ao bem comum e à paz social. Nessas condições, assentadas e
explicitadas as razões de inconstitucionalidade, de ilegalidade e de
contrariedade ao interesse público que me impedem de sancionar a iniciativa
assim aprovada, devolvo o assunto ao reexame dessa Colenda Casa de Leis.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e
consideração.
GILBERTO KASSAB, Prefeito