quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma Audiência Pública entre a Farsa e o Agir: A faculdade de Direito da PUC/SP




            Acredito que seja de conhecimento de todos que, por iniciativa da direção da faculdade de Direito da PUC/SP, o Conselho da Faculdade aprovou a elevação da média de aprovação no curso de 05 para 07 a partir do ano de 2012.
            O argumento principal utilizado pela direção da faculdade para justificar essa medida foi a queda do desempenho da PUC/SP em exames como o ENADE e a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
            Independente das críticas cabíveis tanto a esses exames em si quanto a lógica de avaliar a qualidade do curso com base nessas provas; fato é que a queda no desempenho da PUC/SP nesses testes passou a se manifestar a partir do ano de 2007. Curiosamente esse foi também o ano em que se começou a sentir os efeitos concretos da Maximização dos contratos do professores promovida pela intervenção da Igreja e acatada, passivamente, por essa direção da faculdade de direito que se limitou a “negociar” com a Fundação São Paulo.     
            Ainda assim a direção da faculdade de Direito tem se recusado a discutir publicamente questões como a da maximização dos contratos de trabalho dos professores, dentre outras que acreditamos poderem explicar o porquê da piora no nível do nosso curso de Direito.
            Visto retrospectivamente acredito podemos afirmar que a aprovação da média 07 tem um significado estritamente simbólico nessa conjuntura. A medida em si é incapaz de solucionar os problemas do curso, fundamentalmente por que a origem da problemática é diversa. Sendo assim, o aumento da media de aprovação não passa de uma medida para dar uma reposta da direção à piora do curso, não com o real objetivo de resolver o problema, mas de esvaziar a eventual pressão política em torno da questão e desloca o foco da problemática. É uma espécie de medida de engodo, de álibi, que exonera de culpa a instituição (e a direção) e coloca os estudantes como únicos culpados pela piora do curso de graduação.
            Acredito tratar-se no caso da média 07 de evidente atuação simbólica da direção da faculdade, onde há uma “tentativa de dar a aparência de solução dos respectivos problemas” e que finda por “não apenas deixar os problemas sem solução, mas, além disso, obstruir o caminho para que eles sejam resolvidos.” [1]
            Nesse ínterim, a maximização galopa nas costas dos professores; a pesquisa é cada vez mais sucateada e desvalorizada e mesmo seu espaço curricular é atacado - basta ver a forma como está sendo realizada a monografia de conclusão de curso com apenas um semestre previsto na estrutura curricular. Todos os espaços extra-aulas têm sofrido constrição desde 2007, a própria extensão universitária dia a dia desaparece das discussões institucionais. A situação tem chegado ao pondo de professores pedirem exoneração da PUC e acusar a Fundação São Paulo de estar praticando “demissão indireta” (Palavras do Prof. Paulo A. Garrido de Paula ao “se demitir” do Curso de Direito da PUC/SP).
            Ao questionarmos a direção da faculdade sobre esses fatos, tudo que o ilustre diretor foi capaz de nos responder foi que “estamos em processo de esclarecimentos perante a Fundação São Paulo”. Já perante o pedido de audiência pública subscrito por mais de 1600 estudantes, esse mesmo diretor foi contundente ao bradar: “Indefiro !” Tudo isso ainda no primeiro semestre.
            Parece-nos absurdo que a direção da faculdade, diante desse quadro calamitoso, insista em falar grosso com os estudantes e fino com a Fundação São Paulo. Temos do nosso lado a história da PUC, os direitos dos professores e a absoluta ilegalidade de todo esse processo de maximização engendrado pela Fundação São Paulo. Já está na hora de as instituições da PUC se oporem a esses arbítrios externos que vem atacando nossa universidade. 
            A única atitude mais contundente tomada pela direção da faculdade se deu quando a Fundação São Paulo tentou intervir diretamente nos concursos de professores determinando que os mesmos fossem suspensos. Só nesse momento a direção esboçou alguma reação. Mas o episódio serve mesmo para ilustrar o quanto a Fundação tem se mostrado confortável em intervir em tudo, sem o menor pudor de atropelar qualquer instância da universidade. Ainda assim, a direção da faculdade está tão distante dos estudantes que nem se preocupou em informar a comunidade da suspensão desses concursos, bem como os motivos para tal.             
            Diante desses fatos, insistimos em afirmar a importância de uma audiência pública, não para apontar dedos e nos dividirmos, mas para que a direção da faculdade, juntamente com o corpo discente e docente possa se unir em prol da defesa da nossa autonomia. É preciso que a direção da faculdade de direito perceba que não são os estudantes os culpados pelos atuais problemas puquianos, mas sim a atuação indevida e ilegítima de uma entidade mantenedora que a muito vem extrapolando suas funções e se intrometendo em questões que são de competência da comunidade puquiana.
            Por isso, julgamos premente a necessidade de uma audiência pública para conseguirmos, juntos, correr em defesa do nosso curso e da nossa universidade.

Ivan de Sampaio

P.s: Recomendo também a leitura de outras 03 postagens minhas respectivamente sobre o Meio Estudantil, a Universidade e o CaráterTécnico da nossa formação.        
P.p.s: Essa postagem também foi publicada no blog: Chegou a Hora de Perder a Paciência.       


[1] Marcelo Neves in: A Constitucionalização Simbólica

sábado, 24 de setembro de 2011

Existência e Essência: Rascunhos para uma reflexão sobre identidade de gênero




            Nessa postagem quero fazer algumas reflexões sobre questões que enunciei quando comentei o dia do orgulho heterossexual na postagem O Orgulho que Serve ao Preconceito. Estou mais uma vez me aventurando nesse tema que tenho pouco acúmulo. Por essa razão, o que pretendo aqui é apenas levantar algumas questões que possam contribuir para a reflexão do tema.    
            Antes de entrar propriamente no tema da produção de identidade de gênero em nosso tempo gostaria de reconstruir, de forma bastante simplificada, uma tese existencialista. O existencialismo de Sartre tem como um de seus fundamentos a tese de que “a existência humana precede sua essência.” Nesse ponto Sartre parte da leitura que Heidegger faz da modernidade. Para Heidegger, o início da modernidade está no pensamento de Descartes. Heidegger identifica no cogito cartesiano o passo primeiro do movimento moderno do homem tornando-se senhor de si mesmo.
            Ao observarmos no pensamento teológico a concepção de um deus criador do mundo, vemos ali a gênese da concepção moderna de natureza humana. Se uma entidade metafísica superior cria o homem, isso significa que, antes do ato criador, existia, no gênio dessa entidade, a idéia, a essência do homem. Nessa concepção, a essência do homem seria anterior a sua existência, e mesmo independente dela. Logo, o homem já surgiria no mundo com uma quantidade de predicados estabelecidos por Deus enquanto a essência do seu ser.
            A partir de Descartes Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade e emerge o cogito cartesiano, a verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da representação, ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[1], assegura a si mesmo enquanto aquele que é.          
            Em especial a partir do séc. XVIII, o ateísmo filosófico suprime a idéia de Deus. Mas, a idéia de essência humana se mantém agora denominada de natureza humana. O homem seria assim o mero representante individual de um conceito universal pré-determinado. Ao mesmo tempo em que o humanismo de Kant parece colocar o homem no centro do seu sistema filosófico, a abordagem antropológica formula a natureza universal desse homem de forma que o homem é um fim em si e esse fim pode ser visto no âmbito dessa universalidade humana que é a natureza própria do homem.
            Depois desse percurso podemos afirmar que o existencialismo colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência, ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência, sua própria natureza seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é uma construção do próprio homem. Para Sartre o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência” (J-P. Sartre). A isso Sartre chama subjetividade.
            Veja que essa subjetividade não se confunde com uma individualidade. A subjetividade sartriana se dá numa relação de responsabilidade do homem pelo mundo, é fruto de uma vontade. Essa vontade não é uma escolha individual, mas uma capacidade criadora.  
            Feito esse longo preparo posso agora falar propriamente da identidade de gênero. De forma geral, na nossa cultura o que se busca fazer é ligar a identidade de gênero a um sexo biológico. Ou seja, se atribui ao homem uma “natureza” masculina e à mulher uma “natureza” feminina. O ponto que quero destacar é que a partir da leitura existencialista que mencionei, devemos ver a existência como anterior a essência. Ou seja, não devemos conceber uma natureza a priori que pode ser identificada com um sexo específico.
            Se pensarmos no âmbito próprio da sexualidade isso fica um pouco mais evidente. Essa divisão estabelecida entre uma natureza feminina e uma masculina repercute em determinada forma do uso dos prazeres que se julga “natural” a cada corpo. Somando-se a isso a formulação de que, igualmente por natureza, o sexo seria mera função reprodutora, vemos a constituição aqui de uma essência, de uma natureza a posterior. Quer dizer, os corpos humanos têm a capacidade de obtenção de prazer de inúmeras maneiras, mas a nossa cultura formulou um núcleo binário que divide o uso do corpo e dos prazeres entre homens e mulheres. Sendo assim, vemos que o que se chama de natural, ou de essência para os usos dos prazeres é na realidade uma criação humana de subjetividade.
            Dessa forma as identidades de gênero são formas de subjetividade criadas pelo homem e atribuídas enquanto essências, enquanto natureza de cada sexo. O que quero apontar é que nada mais artificial do que isso que chamamos de natural.
            Precisamos perceber que em nossa sociedade contemporânea não temos escolhas de subjetivação, podemos ter escolhas de âmbito individual menores, mas no âmbito da nossa constituição enquanto sujeitos vivemos em tempos de normalização como diria Foucault. Isso significa que pelos atuais mecanismos de poder nossa subjetividade é imposta. É precisamente por isso que falamos em orientação sexual e não opção. Ou seja, essas essências masculinas e femininas são impostas a cada um de acordo com um sexo, com a justificativa de ser isso natural, inato a cada sexo.  
            Somos então normalizados dentro de alguns parâmetros pelos quais nos são impostos elementos de subjetividade que constituem nossa identidade. Sendo assim, é como se nós, heterossexuais, fossemos condicionados a determinados prazeres de forma a ser quase inconcebível a atração sexual fora dos parâmetros dessa identidade. Os homossexuais são uma primeira ruptura com a divisão binária que atribui uma natureza masculina ou feminina a cada sexo. Dessa forma os gays e lésbicas conseguem superar essa primeira formulação, mas inda estão delimitados pela constituição de uma identidade. Da mesma forma que os heterossexuais, os homossexuais são “normalizados” e esse processo os constitui enquanto sujeitos titulares de uma identidade imposta.
            De certa maneira tivemos alguns momentos em que essas formas de subjetividade da sexualidade e de gênero foram questionadas. Podemos mencionar tanto os movimentos feministas quando as lutas LGBTT. O ponto é que tanto a luta por igualdade quanto as lutas por reconhecimento apenas ampliaram ou diversificaram as possibilidades da produção de identidades de gênero. Esses movimentos conseguiram colocar em cheque as concepções de identidades de gênero naturais ou de essências de um sexo masculino e feminino. Eles também romperam com a imposição de usos da sexualidade por cada sexo, mostrando que os corpos masculinos e femininos podem ter prazer fora dos usos ditos naturais.
            Ao dividir o mundo em um gênero masculino e um feminino, os gays e lésbicas seriam vistos apenas como indivíduos com “essências trocadas”. Mas, o que os movimentos LGBTT conseguiram, foi mostrar que eles têm uma identidade autônoma, fora dessa separação binária entre masculino e feminino. Os movimentos feministas por sua vez colocaram em cheque a própria rigidez dessa separação de características femininas e masculinas.          
            Acredito, por outro lado, que ainda assim não se conseguiu romper com a lógica da nossa sociedade de normalização. Mesmo entre os gays e lésbicas ainda vemos a formação de identidades próprias que se constituem também enquanto uma orientação, uma imposição de subjetividade. O que vemos é apenas surgir novas possibilidades de identidades ou a mera possibilidade de não se vincular uma identidade de gênero a um sexo específico.  
            Creio que o caminho para uma efetiva liberdade sexual deve ir além. Seria preciso romper com a própria constituição de identidades sexuais. Precisaríamos sai da lógica da normalização e nos tornar senhores de nossa própria subjetividade. Nesse sentido não mais produziríamos um masculino e um feminino, os sexos biológicos não teriam o condão de orientar a sexualidade e o desejo em nenhum sentido. Não teria significado dividir o mundo em heterossexual, homossexual, bissexual... Se não formulássemos essas identidades a atração sexual não poderia ser usada para definir os indivíduos, em verdade essa atração nem mais obedeceria a critérios definidos. Nesse sentido os desejos teriam como objeto pessoas, e não homens e mulheres.  
            Obviamente isso não é algo que possamos simplesmente escolher romper com um mero ato volitivo. Mas acredito que o primeiro passo é conseguirmos ver na nossa própria identidade de gênero e sexualidade uma forma de imposição de subjetividade que de certa forma nos impede de sermos senhores de nós mesmos.
            Vou encerar essa postagem por aqui. Não consegui ser muito claro, mas a própria proposta desse texto era apenas fazer um rascunho dessa reflexão.

                                                                                    Ivan de Sampaio


[1] Em Descartes Deus ainda perece como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue Deus para explicar a relação corpo/alma, deus aparece já de forma indireta. A verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.       

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A depreciação da memória perdida e a segurança do medíocre: A PUC do nosso tempo.



           
"Numa universidade o que deve prevalecer é o aspecto educacional, mesmo quando a juventude conteste, como acontece em todo o mundo, enfrentando determinadas normas estabelecidas, ao educador compete atuar de forma pedagógica e parece que só desta forma realmente podemos contribuir para o crescimento e para afirmação de nossa juventude e não é pela repressão que vai se alcançar estes objetivos." (Nadir Kfouri)

            Ontem, quando voltava para casa, recebi uma mensagem no meu celular de uma amiga, perguntando a respeito da suspensão das atividades acadêmicas na PUC/SP nessa sexta-feira. No momento não tinha conhecimento do fato, mas supus que a interrupção das aulas tivesse sido decretada, em decorrência da perda (no dia 13 de setembro) da grande Professora e Reitora (entre os anos de 1976 e 1984), Nadir Kfouri. Seria bastante natural que a PUC/SP suspendesse suas atividades para cultivar um pouco a memória desta que foi responsável pelos atos mais significativos de toda a história da PUC/SP.
            Ao chegar em casa, fui verificar a informação, e qual não foi a surpresa ao constatar que o motivo da suspensão das atividades na PUC/SP era por razão diametralmente oposta.
            Estava sendo organizado para sexta-feira à noite na PUC/SP um festival de música que tinha como pauta a questão política da legalização das drogas. Diante disso, para evitar que tal festival se realizasse, o Reitor Dirceu de Mello decretou, não apenas a suspensão das atividades, como também proibiu a circulação de qualquer pessoa no campus Monte Alegre da PUC/SP. Vide ato do reitor nº 127/2011.
            Para comentar um pouco esse fato quero iniciar por algo mais digno e apropriado para o momento. Lembremo-nos da Reitora Nadir Kfouri que nos deixou órfãos essa semana.
            Dona Nadir, juntamente com Dom Paulo Evaristo Arns, são as figuras que representam o que a PUC/SP foi durante muitos anos. O lugar da inquietação, da resistência, da ousadia, da insubordinação. Essa reitora era o retrato da excelência acadêmica da PUC/SP, ao evidenciar que o espírito da liberdade é o único sustentáculo efetivo do conhecimento. Para Nadir Kfouri a liberdade de pensamento deve ser precedida pela liberdade de ação, sem a qual o exercício do pensar só pode ser ilusoriamente livre.
            Estamos falando da Reitora que enfrentou a ditadura civil-militar brasileira por diversas vezes. Um enfretamento que se estendia desde a contratação de professores expulsos das universidades públicas, até a luta direta contra o regime, depois da invasão pelas tropas do exército desse mesmo campus da PUC/SP hoje sitiado.
            Essa mulher, que foi a primeira mulher reitora de uma universidade católica no mundo, escolhida pelo voto direto, fundou juntamente com Dom Paulo a excelência acadêmica puquiana ao transformar a universidade na “Cidadela da Resistência”. Foi na ousadia que a PUC/SP se agigantou e é a sua atual subserviência e domesticação que a encaminha para a mediocridade.
            Pois bem, o fechamento das portas da PUC/SP no dia de hoje não representam em nada a lembrança dessa extraordinária mulher que lamentavelmente nos deixou. Muito pelo contrário. Fechar a PUC hoje foi a evidência final de que essa memória, que construiu a universidade, se apagou.
            Retirar da PUC/SP a sua liberdade de contestar a ordem posta é a negação da “cidadela da resistência”. Haverá aqueles que virão ainda com os argumentos indigestos de que “hoje vivemos numa democracia”, “não estamos mais diante de um regime ditatorial”, “há meios e locais adequados para a contestação”. A estes, poderia apenas responder com uma provocação: Agamben explica. Mas, como credito que os únicos que entenderiam a provocação seriam aqueles que não precisariam ouvi-la, vou por outro caminho.

“A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do direito, que é uma luta constante (...). Essa luta faz parte do direito, porque o direito não é uma ‘coisa’ fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente.” [1]

            Acredito que o mínimo que se espera de alguém que se julgue defensor da democracia e que proteja o direito de expressão das opiniões contrárias as suas da mesma forma que defende seu próprio direito de proferir o que pensa. Não há democracia de mão única, nem de discurso único. Sobre “o lugar”, bem, a universidade é o loco de contestação por excelência, e mais, a democracia não tem lugar definido, ela não pode ser trancafiada em uma sala ou disciplinada por ritos e formalidades constritoras. As formas deveriam garantir o viver em liberdade, se não servem a isso, são as formas mesmas que devem ser abolidas. De toda maneira, já estou fugindo do assunto.
            O ponto é que a PUC/SP esqueceu-se desse passado que é o responsável por toda sua grandeza. Recusou-se a interromper as atividades para lembrar o legado de dona Nadir, mas não titubeou em sitiar a universidade para negar sua história. Nem é surpresa que na PUC/SP tenha passado em branco os 90 anos de Dom Paulo, que deveriam ter sido celebrados também essa semana.
            O que vemos hoje é a morte de uma PUC/SP que nem sei se ainda merece o título de universidade. A transformação de um loco de ousadia, numa escola de adestramento. Diante da mera possibilidade de acontecer na PUC/SP algo que ponha em cheque o status quo das coisas, o reitor manda sitiar a “cidadela da resistência” da mesma forma que fez Erasmo Dias em 1977.
“(...) ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico” [2]

            Os fundamentos são quase os mesmos dos milicos, os meios igualmente autoritários. Se no passado o legítimo eram os decretos e atos institucionais, a reitoria hoje os chama de “atos do reitor”. Se a PUC/SP é privada na hora de cobrar suas altíssimas mensalidades, é, em contra partida, pública no momento que o reitor acha conveniente aplicar regramentos estaduais de universidades estatais para proibir a cervejinha dos estudantes. Se a PUC/SP é democrática nas suas propagandas para angariar alunos, é profundamente autoritária para impedir a própria organização estudantil. Se a PUC/SP brada, em toda sua propaganda interna e externa, um “orgulho de ser PUC”, cabe a nós hoje perguntar qual é o motivo desse orgulho.            
           Fato é que hoje os portões da PUC/SP estão fechados. Fechados para garantir que o conhecimento e o espírito da ousadia não entrem na universidade, bem como para assegurar que a mediocridade continue confortavelmente instalada em seu interior. Esse é o “orgulho de ser PUC”, uma universidade que deprecia sua história para maquiar sua mediocridade.                        

Ivan de Sampaio


P.s: Essa Postagem foi publicada também no blog Chegou a Hora de Perder a Paciência.  
                                             


[1] LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo - SP: editora: Brasiliense, 2006. Coleção primeiros passos. P. 82.
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo – SP Editora Paz e Terra, 13ª edição 1992. P.81.   

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Estado e o Rebanho


          


            Hoje, dia em que comemoramos nossa “independência”, vou falar sobre um tema bastante discutido. Quero refletir um pouco sobre idéia de “Estado laico”.

            Ultimamente essa expressão tem sido evocada, fundamentalmente para se opor a invasão religiosa na política (em especial no congresso nacional). Esse primeiro significado da expressão decorre fundamentalmente da leitura do art. 19, inciso I[1] da Constituição Federal. Nesse sentido tendo a defender veementemente as iniciativas dos movimentos que defender um Estado laico. Os grupos religiosos que se projetam no âmbito eleitoral, em sua maioria, se ligam a pautas extremamente conservadoras e por vezes discriminatórias. As bancadas cristãs de forma geral tendem mesmo a buscar impor práticas provenientes de sua moral religiosa por força de lei.

            Isso é fruto da própria doutrina Cristã, que, por mais que tenha seu ponto auto na idéia de identidade com o outro[2], se desenvolveu enquanto uma doutrina universal que tem sérias dificuldades em lidar com a diferença. A pretensão expansionista cristã pode ser vista em inúmeras de suas práticas, a título de exemplo podemos mencionar duas mais conhecidas: a catequese e a formação e envio de missionários para os quatro cantos do mundo. Toda a disputa por espaço dos cristãos é “justificada” com o objetivo aparentemente inofensivo de “levar a palavra de Deus”.
             A questão é que, a certeza sobre a verdade desse grupo os leva a práticas impositivas; desde as fogueiras da inquisição (quando os cristãos comandavam o Estado) até a formulação legislativa no momento presente. Toda essa pretensão de verdade absoluta e universalização religiosa leva-me a apoiar o movimento que defende um Estado Laico.
            Esse debate é amplo e posso mencionar aqui alguns momentos exemplificativos importantes, bem como indicar alguns textos que discutem as questões. As discussões, em âmbito principalmente judiciário, sobre a presença do crucifixo nas salas de audiência. Podemos mencionar também as iniciativas que objetivam tornar obrigatória a leitura da bíblia[3]. As marchas realizadas em defesa da laicidade do Estado. Tudo isso aparece nessa disputa, e olha que nem estou entrando nas questões mais debatidas que são os diretos GLBTT e a questão da descriminalização do aborto.
            Apesar da amplitude do debate, ao tratarmos o termo Estado Laico enquanto uma forma de “purificar’ o estado das pretensões de imposição de uma crença ou uma moral proveniente de um credo, penso ser necessário sairmos dessas discussões mais pontuais. O que gostaria de discutir hoje é um ponto bastante diferente desse.
            O que pretendo é analisar mais de perto não as formas contemporâneas de tentar tirar a igreja do Estado, mas sim, examinar como, em primeiro lugar, a religião (em especial o cristianismo, mas também, em menor grau, o judaísmo) conseguiu se ligar tão profundamente ao ente estatal. A impressão que tenho é que isso se deu não a partir do ente estatal propriamente, mas por meio do desenvolvimento das práticas de governo[4].
            Voltemos-nos então um pouco para observar como foi possível que as práticas de governo fossem paulatinamente conjuradas em uma esfera única estatal.   
            De acordo com o pensamento do filósofo francês Michel Foucault, o objeto propriamente de governo são pessoas e coisas, mais ainda, a relação das pessoas e das coisas entre si. Nesse sentido, Focault nos aponta que a idéia de um governo nesses moldes se distingue muito da matriz grega que é usualmente referência em matéria de filosofia política. “No pensamento grego o objetivo do governo seria a cidade, não os homens.” [5]. Dessa forma, ao governar a polis, os homens seriam governados apenas de maneira indireta. Esse governo do qual falamos, que teria como objeto a conduta em si dos homens, parece ter sua origem muito mais marcante no pensamento judaico-cristão. Será na pastoral cristã que Foucault encontrará primeiro o sentido de “governar” que desenvolvemos aqui. Falamos do “poder pastoral”.  
            De maneira sintética, podemos caracterizar o “poder pastoral” como uma forma de poder que não se exerce sobre um território definido, mas sim sobre um grupo, sobre uma multiplicidade de indivíduos em movimento. Essa forma de poder é também individualizante, o pastor não abandona nenhuma de suas ovelhas, e, mesmo que uma delas venha a se desgarrar, ele não a deixará para traz. Além disso, a finalidade desse “poder pastoral” é justamente a manutenção do grupo e sua segura condução ao seu destino. “Como um pastor cuida do seu rebanho, quando esta no meio de suas ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares por onde se dispersam em um dia de nuvens e de escuridão” [6]    
            Claro que aqui há uma matriz fortemente teológica, de concepção de um Deus (judaico-cristão) que não está ligado a um território específico. É um Deus “móvel” que protege um povo escolhido (hebreus) ou toda humanidade (universalismo cristão) onde quer que se encontre. Além disso, é também um Deus que conduz, seja à terra prometida por meio de seu pastor (Moises) seja à salvação por meio do sangue de seu único filho (Cristo).
            Pois bem, mas o aspecto a ser destacado de tudo isso é precisamente o caráter de “condução” desse poder pastoral, seja dos homens, das coisas ou das condutas. Se pensarmos no governo das almas (regimen animarum) a intervenção da pastoral se fortalecerá precisamente nas condutas, na tentativa de impedir o pecado, de dirigir às condutas dentro dos padrões do bom e do justo. De forma ampla, poderíamos falar em uma condução da vida, em uma gestão da vida. O grande objetivo dessa condução será assim atingir um estado de salvação para o rebanho inteiro e para cada indivíduo em particular.
            Justamente por ser a salvação o grande objetivo do pastoreio, a relação entre o pastor e o rebanho é uma relação de obediência para com o pastor. Também é o pastor o conhecedor da lei e dos desígnios divinos, o que reforça a necessidade de obediência, vez que o discurso do pastor será necessariamente o discurso verdadeiro fruto da vontade de Deus. A obediência cristã será assim total para com o pastor. Seguir o pastor é simplesmente cumprir o desígnio de Deus.
            Diante disso, a responsabilidade do pastor será apontada como de dois tipos: distributiva e analítica. Distributiva por que “o pastor deve assegurar a salvação de todos, mas tal função não pode acarretar o descuido em relação a cada uma das ovelhas”. [7] A responsabilidade é também analítica, pois o pastor deverá responder por todos os atos praticados por cada um dos indivíduos sob sua guarda. Logo, a salvação do pastor é a salvação de seu rebanho e assim como o “cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo”, o pastor deve estar disposto a se sacrificar pela salvação do rebanho.
            No fundo, o pastoreio é um cuidado, cuidado quase paternal. Mas é também um cuidado que não tem como fim a autonomia dos sujeitos, mas sua obediência. E o fim dessa obediência é a própria sujeição, a mortificação da vontade do sujeito, pois o que conduz os homens deve ser a vontade de Deus. “Liberdade é obedecer a Deus” [8]. Cabe assim ao pastor dirigir a própria consciência do rebanho.  
            Pois bem, mas tudo isso parece operar no âmbito da religião. Como se dá então a passagem desse governo das almas para a política propriamente?
            Inicialmente a religião passa a se aproximar mais da vida material e isso já projeta, de certa forma, essa lógica da pastoral cristã para outros âmbitos da vida. Mas a racionalidade política que Foucault aponta como a ponte da pastoral cristã para a política é a idéia tomista de que “o rei governa”. A figura do monarca passa paulatinamente a ser “divinizada” e o governo do rei deve então ser espelhado no governo da natureza sobre vida, do pastor sobre o rebanho, do pai sobre a família, de Deus sobre os homens.
            Veja que assim Foucault consegue, não só apontar a antecedência do governo em relação à instituição própria da soberania, mas também permite a ele indicar que foram as próprias práticas de governo que paulatinamente se “entificaram” na criação do Estado soberano.
            O que acredito que podemos perceber de tudo isso é que o pensamento religioso não está presente apenas nas disputas políticas pontuais como as questões que indiquei no início dessa postagem. Creio que a própria forma do exercício dos poderes de governo tem, em si, uma matriz fortemente teológica. A própria idéia de que os homens precisam ser governados, de que um líder é necessário pode ser vista como uma releitura e uma recriação do mito do messias do salvador.
            Penso assim que precisamos lutar por uma laicidade muito mais ampla. Não basta tentar fazer com que o Estado seja laico, é preciso que ele seja superado enquanto ente e enquanto prática para que possamos tentar formular a política de forma minimamente livre da fé.
            Feliz dia da Independência para tod@s!  

Ivan de Sampaio


[1] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[2] “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22,39)
[3] Particularmente tentar incluir na ritualística legislativa a leitura da bíblia chega a ser engraçado. Honestamente, acredito que se os cristãos realmente lessem a bíblia de forma sistemática, dificilmente manteria sua fé. Pra mim, em particular, a bíblia foi um dos livros que mais ajudou a hoje afirmar que sou ateu.         
[4] Para falar disso usarei um pouco minha monografia de conclusão do curso de direito da PUC/SP. Especificamente um tópico chamado: “O poder que conduz os rebanhos” do Capítulo III.      
[5] FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. P. 219.
[6] BIBLIA, Ezequiel. Português. Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo/SP. 1985. Cap. 34 Vers. 12.    
[7] FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. P. 220.
[8] Papa Bento XVI em sua homilia na missa celebrada dia 15 de abril de 2010 na capela paulina no Vaticano.  

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Kassab: seu único momento de lucidez


      

            No mês passado fiz uma postagem sobre o projeto de lei municipal 294/2005 que instituía em São Paulo o “Dia do Orgulho Heterossexual”.
            Felizmente o prefeito Gilberto Kassab, em um de seus raríssimos momentos de lucidez, (creio até que tenha sido o único enquanto prefeito) decidiu vetar o projeto. Realmente foi uma surpresa esse veto vindo de um prefeito famoso pela truculência. Lembremos penas de um episódio:

            De toda forma, publico hoje o texto do veto aqui, tendo em vista que dificilmente o prefeito Kassab nos dará, em vida, outro motivo para elogio.       
            O Marcelo Semer já comentou o veto em seu blog, veja aqui. De forma que me limitarei a colocar aqui as razões do veto para aqueles que se interessarem em ler. Não acrescento mais nada também porque creio que estaria apenas repetindo o que eu mesmo já publiquei na postagem O Orgulho que Serve ao Preconceito, bem como o que outros companheiros da blogosfera já falaram, como na postagem Orgulho Heterossexual do blog Janela da Parede Azul mantido por Oscar Santos.  
            Dessa forma, segue as razões do veto redigidas pela assessoria jurídica do prefeito.

Ivan de Sampaio

RAZÕES DE VETO

Projeto de Lei nº 294/05 
Ofício ATL nº 105, de 30 de agosto de 2011 
Senhor Presidente,

            Por meio do ofício acima referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 294/05, de autoria do Vereador Carlos Apolinário, aprovado na sessão de 2 de agosto do corrente ano, que objetiva dispor sobre a instituição do “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”. De acordo com o teor da propositura, o “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”, a ser anualmente comemorado no 3º domingo do mês de dezembro, integrará o “Calendário Oficial de Datas e Eventos do Município de São Paulo”, devendo o Poder Executivo envidar esforços no sentido de divulgar a data com o objetivo de “conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes” (artigos 1º e 2º).
            Contudo, considerando que, à vista das conclusões alcançadas no parecer expendido pela Procuradoria Geral do Município, acolhida pela Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e na manifestação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, conforme restará adiante explicitado, o conteúdo da propositura é materialmente inconstitucional e ilegal, bem como contraria o interesse público, vejo-me na contingência de, com fundamento no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município, vetar totalmente o texto assim aprovado. 
            Referido projeto de lei, cujo artigo 1º parece tão somente instituir e acrescentar mais uma data comemorativa ao Calendário de Eventos da Cidade de São Paulo, o que seria plenamente legítimo, na realidade não se reveste da simplicidade que aparenta ostentar, circunstância que, por certo, explica a sua enorme repercussão, majoritariamente negativa, no Brasil e até mesmo na imprensa internacional, como é o caso, só para exemplificar, das revistas “Forbes” e “Newsday”, que destacaram a inusitada criação do “Straight Pride Day” em seus respectivos sites, consoante noticiado no Portal da “Folha.com” em 2 de agosto de 2011. 
            Em princípio, poder-se-ia argumentar que, se a Cidade de São Paulo comemora, como tantas outras no Brasil e no mundo, o “Dia do Orgulho Gay” (Homossexual), então, sob o pálio de uma isonomia meramente formal, seria legítimo que ela igualmente comemorasse o “Dia do Orgulho Heterossexual”, pois dessa forma todas as preferências, orientações ou tendências sexuais estariam contempladas pelo legislador no aludido Calendário, confirmando a vocação democrática e pluralista desta terra paulistana.
            Essa não é, todavia, a isonomia de tratamento que o comando contido no artigo 2º do indigitado texto pareceu querer por evidência, na medida em que ali está prescrito que, vale a pena repetir, o Poder Executivo Municipal “envidará esforços no sentido de divulgar a data instituída por esta lei, objetivando conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes”. Como se vê, o dispositivo expressamente patenteia que o “Dia do Orgulho Heterossexual”, cuja comemoração anual dar-se-á na semana do natal, estará associado ao resguardo da moral e dos bons costumes. Logo, não é necessário fazer grande esforço interpretativo para ler, nas entrelinhas do pretendido preceito, que apenas e tão só a heterossexualidade deve ser associada à moral e aos bons costumes, indicando, ao revés, que a homossexualidade seria avessa a essa moral e a esses bons costumes. Aliás, o texto da “justificativa” que acompanhou o projeto de lei por ocasião de sua apresentação descreve, em vários trechos, condutas atribuídas aos homossexuais, todas impregnadas de sentimentos de intolerância com conotação homofóbica. 
            Consequentemente, sob essa perspectiva, caso o Município de São Paulo, por qualquer de seus órgãos, viesse a dar cumprimento ao mencionado artigo 2º, daí resultaria a inequívoca mensagem à população em geral no sentido de que a homossexualidade seria “um modo de ser” supostamente contrário à moral e aos bons costumes, com isso violando princípios basilares e objetivos fundamentais constitucionalmente agasalhados, dentre eles o da cidadania, o da dignidade da pessoa humana, o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o da redução das desigualdades sociais, o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e “quaisquer outras formas de discriminação”, e o da prevalência dos direitos humanos (Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 1º, incisos II e III, artigo 3º, incisos I, III e IV, e artigo 4º, inciso II).
            Mas não é só. A essa desconformidade da proposta legislativa com a Carta Magna Brasileira, por si só suficiente para impedir a sua conversão em lei, soma-se o fato de que ela também não está de acordo com o interesse público. Com efeito, sob a aparência de promover o “orgulho da heterossexualidade” - e aqui se deve observar que não faz sentido algum “ter” ou “comemorar” o orgulho de pertencer a uma maioria que não sofre qualquer tipo de discriminação - a carta de lei vinda à sanção mal disfarça o preconceito contra a homossexualidade, associada, por inferência (artigo 2º) e consoante se colhe de sua “justificativa”, à falta de moral e de bons costumes. Assim, ao invés de promover o entendimento das diferenças e, pois, a paz social, função maior da Política, o projeto de lei milita a serviço do confronto e do preconceito, razão primeira da sua contrariedade ao interesse público. 
            Acerca do tema, lapidar e percuciente é a abordagem realizada pelo jurista MARCOS ZILLI, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP e Coordenador da “Coleção Fórum de Direitos Humanos”, no artigo intitulado “A criação do Dia do Orgulho Hétero Incentiva a homofobia? - Tolerar, verbo transitivo”, publicado na seção “Tendências/Debates” do Jornal Folha de S.Paulo, edição do dia 13 de agosto de 2011, do qual, por pertinente e oportuno, ora se transcreve o seguinte trecho: 
            “A expressão “orgulho” (“pride”), estreitamente associada à luta pela conquista da cidadania plena da chamada comunidade LGBT, representa o contraponto do sentimento de “vergonha”, que sempre pautou o tratamento opressivo dado à orientação e à identidade sexual diversa do padrão socialmente aceito. Afinal, tais comportamentos evocavam a noção de defeito, de modo que deveriam permanecer ocultos diante do vexame familiar e social que provocavam. A dignidade humana, como se sabe, é patrimônio que não está restrito a grupos específicos. No entanto, são justamente as minorias que mais se ressentem do exercício pleno de seus direitos, já que as sociedades tendem a ditar o seu ritmo à luz de uma maioria. Fixa-se, então, um padrão comum, e a ele se agrega o qualificativo da normalidade. A situação se agrava quando a minoria não é percebida como uma projeção natural da diversidade e da pluralidade humana, mas como um desvio a ser menosprezado, esquecido ou corrigido. É nesse momento que se abrem as portas para o exercício diário da intolerância e da violência. A destinação de datas relacionadas com as minorias é apenas uma das ferramentas disponíveis no vasto terreno da luta pela efetividade dos direitos humanos. Em realidade, elas possuem valor meramente simbólico, já que o objetivo é o de chamar a atenção do grupo social em favor de quem é, diariamente, esquecido no exercício de seus direitos. Busca-se promover a conscientização de que a dignidade humana não é monopólio restrito à maioria. Vem daí a consagração dos dias “da Mulher”, “da “Consciência Negra” e “do Índio”. Nessa perspectiva, a reserva de uma data especial para a celebração do orgulho dos heterossexuais se mostra desnecessária, uma vez que não há discriminação por tal condição. Não são associados à doença ou ao pecado, tampouco são alvo de perseguições no trabalho, nas escolas ou em outros ambientes sociais. A união heterossexual, por sua vez, é totalmente amparada pelo Estado e pelo Direito. Além disso, a iniciativa legislativa propicia uma leitura perigosa, capaz de desvirtuar a própria dinâmica dos direitos humanos. Com efeito, ao acentuar o vínculo já consolidado entre “orgulho” e o “padrão socialmente aceito”, a lei cria dificuldades para que se elimine o estigma da “vergonha” que persegue o movimento oposto. Afinal, vergonha não emerge do que se mostra normal, mas, sim, do que se qualifica como anormal. Em verdade, a energia criativa do legislador deveria ser canalizada em prol de políticas públicas eficientes para o processo de consolidação da respeitabilidade integral dos direitos humanos. A questão é especialmente urgente em uma cidade onde são recorrentes os atos de violência racial, étnica, religiosa, de gênero e de orientação sexual. Experiências frutíferas poderiam ser alcançadas nos bancos escolares públicos. Leis que se mostrassem preocupadas com a formação de crianças desprovidas de quaisquer preconceitos já seriam muito bem-vindas. Afinal, na base da educação dos direitos humanos repousa o valor-fonte da tolerância. É chegada a hora de aceitarmos tudo o que não se apresente como espelho.”
            Por derradeiro, impende ressaltar que as políticas públicas encampadas pelo Município de São Paulo inserem-se no atual contexto nacional e internacional de reconhecimento e garantia dos direitos das denominadas minorias ou grupos em situação de vulnerabilidade social (mulheres, negros, nordestinos, crianças, pessoas com deficiência física, comunidade LGBT, idosos, pessoas em situação de rua e outros), em perfeita harmonia, aliás, com o disposto no artigo 2º, “caput” e inciso VIII, da Lei Orgânica da nossa Cidade, segundo o qual a organização do Município observará, dentre outros princípios e diretrizes, a garantia de acesso, a todos, de modo justo e igual, sem distinção de origem, raça, sexo, “orientação sexual”, cor, idade, condição econômica, religião “ou qualquer outra discriminação”, aos bens, serviços e condições de vida indispensáveis a uma existência digna. Por óbvio, para o alcance desse desiderato, no caso dessas minorias, faz-se necessário lançar mão da figura da “discriminação positiva”, calcada na noção aristotélica de isonomia, qual seja, tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais. 
            Com esse propósito, cabe destacar, pela pertinência com o assunto aqui enfocado, as políticas públicas voltadas à específica proteção do segmento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT, como a adoção, dentre outras, das seguintes medidas: a) criação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, cuja Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual - CADS tem por atribuição atender as necessidades específicas de referido segmento, visando a promoção da sua cidadania e o combate a todas as formas de discriminação e de preconceito; b) instituição do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual, órgão colegiado, de caráter consultivo, composto por membros da sociedade civil e Poder Público Municipal, com competência para propor o desenvolvimento de atividades que contribuam para a efetiva integração cultural, econômica, social e política do segmento LGBT; c) edição do Decreto nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010, dispondo sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da Administração Direta e Indireta; e d) envio, à Câmara Municipal, do Projeto de Lei nº 359/07, estabelecendo medidas destinadas ao combate de toda e qualquer forma de discriminação por orientação sexual no Município de São Paulo.
            Por conseguinte, claro está que o projeto de lei em relevo, mormente em face do seu conteúdo discriminatório, efetivamente não se coaduna com as ações governamentais que vêm sendo implementadas no âmbito da Administração Pública do Município de São Paulo, direcionadas ao bem comum e à paz social.
            Nessas condições, assentadas e explicitadas as razões de inconstitucionalidade, de ilegalidade e de contrariedade ao interesse público que me impedem de sancionar a iniciativa assim aprovada, devolvo o assunto ao reexame dessa Colenda Casa de Leis.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB, Prefeito