domingo, 21 de agosto de 2011

Professores e “Tias”: A herança depreciada do ser.


  
            Acabei de ser surpreendido por uma declaração aviltante do atual governador do estado do Ceará (Cid Gomes). Segundo o Sindicato dos Professores do estado do Ceará – APEOC, esse senhor afirmou o seguinte: ‎"Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado.". Farei assim essa pequena postagem para comentar um pouco isso.    
            Creio ser de conhecimento de tod@s que, nos últimos anos, o movimento dos professores tem crescido e ganhado significativa visibilidade. Pelo que tenho visto, as conquistas dos professores ainda são bem pequenas no que tange a pauta da melhoria das condições de trabalho e nas pautas salariais. Mas, acredito que podemos elencar uma primeira e importante vitória já alcançada por esses movimentos. Refiro-me a idéia, que já se espalha por parcela significativa da sociedade, de que o professor deve ser valorizado. Penso ser difícil encontrar ainda pessoas que julguem ser razoável o atual valor pago a título de salários para os professores de ensino público. Essa consciência certamente é produto do grande esforço desses professores que se organizam e que ousaram se arriscar por um ideal. È preciso lembrar o quanto o Estado busca ocultar o que realmente acontece dentro dos muros das escolas. Um exemplo é a política do terror que ainda existe exatamente para desmobilizar a categoria dos professores e calar aqueles que conhecem e vivenciam os problemas da educação púbica. Sobre o tema vale assistir a esse documentário espetacular: Segredos de Estado que fala sobre a “Lei da Mordaça”.
            Pois bem, creio que afirmações como essa do Governador Cid Gomes (PSB-CE) possam, num primeiro momento, ser vistas como uma reação à organização dos professores. Afinal, o movimento cresce dia após dia e cada vez mais parece que nos aproximamos de uma grande transformação na carreira do magistério. Diante disso é esperado que a reação conservadora também apareça.
            Nesse caso, a afirmação do governador é a reedição de certo discurso que circundava nosso país ainda na década de 1960. Quando o regime militar “universalizou” o ensino público, ele o fez segundo algumas bandeiras. A primeira é a supremacia da técnica, reduziu as disciplinas e deu ênfase às ciências exatas suprimindo parte significativa da formação secundarista em humanidades. Além disso, a ditadura civil-militar buscou reduzir muito os custos da educação. A forma para tal foi fazer um corte nas folhas de pagamento que correspondiam ao grande custo regular da educação.
            Para dar sustentabilidade política para essas medidas o regime formulou alguns instrumentos. Primeiro, tudo se justificava com a necessidade de “universalizar” o ensino. Em segundo lugar, o aparato repressor da época se encarregava de minar qualquer foco organizado de resistência. Em terceiro lugar, o professor foi imbuído de uma aura de doçura, os discursos na época afirmavam que os professores seriam “mais” que profissionais, seriam parte da família dos alunos. Com isso paulatinamente se apagava a figura da professora e emergia os contornos da “tia”.
            A “tia” era então uma pessoa doce, que amava seus alunos, que era parte da família. A “tia” não pode fazer greve, a “tia” não precisa ganhar bem, é muito indelicado cobrar da família.
            Creio que essa afirmação do governador Cid Gomes é uma reedição desse discurso da ditadura civil-militar. Não é segredo que o aparelho repressor do Estado ainda se mantém, basta nos remeter novamente à lei da mordaça dos professores que citei no início dessa postagem. O ensino ainda mantém sua natureza tecnicizante e os argumentos econômicos de que não é possível pagar mais continuam seu curso.
            No fundo, o que o movimento dos professores tem conseguido e evidenciar, desnudar todo esse aparelho herdado dos anos do regime militar que continua em operação. Acredito que qualquer possível caminho para uma democracia (em seu sentido não puramente formal) passa por romper com esse entulho autoritário que se mantém no âmbito de nossas instituições, sem dúvidas a começar pelas instituições educacionais.
            Quando um governador faz uma afirmação como essa, acredito que fica evidente que ele está se colocando contrário a todo um movimento de âmbito nacional que busca como fim, mais que uma melhora na educação, mas uma radical transformação. Certamente os professores hoje, em grande parte, exercem sua profissão “por gosto”. É preciso acreditar muito, é preciso ser muito idealista, é preciso ter um espírito de dedicação impar, para optar por ser professor de escolas públicas hoje. Mas isso não justifica os salários pagos. Muito pelo contrário, se esses professores são profissionais assim tão dedicados, no mínimo provam que são merecedores de tratamento muito diverso.
            Por fim, acredito que tudo que fazemos e que escolhemos fazer deve, necessariamente, ser feito “por gosto”. Apenas, a remuneração deve condizer com a dignidade do trabalhador e deve possibilitar que ele exerça bem suas funções. Quando o governador Cid Gomes afirma essa dicotomia entre ganhar salários dignos e dedicar-se a uma atividade por acreditar nela, ele praticamente confessa que se paga bem àqueles que fazem algo em que não acreditam. Será que é por isso que o salário do governador é tão maior do que o dos professores?  
Ivan de Sampaio

P.s: Sobre a universalização do ensino, obviamente não sou contrário a ela. Acredito que o ensino público deve ser para todos. Mas universalizar um ensino depreciado não significa efetivamente levar educação para todos.
P.p.s: Desculpem por uma postagem menos elaborada hoje. Certamente falei apenas uma série de obviedades. Mas quando li as declarações do governador do Ceará (meu estado natal) não consegui não escrever nada. Ressalto que sobre o tema vale assistir também ao vídeo da professora Amanda Gurgel.                              

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ensaio sobre a seção 157 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein

Esse é mais um pequeno trabalho que fiz para o curso de filosofia da USP. Nesse caso tentei propor uma leitura de uma seção das Philosophical Investigations de Wittgenstein a partir da leitura de outra obra do autor o The Blue Book. O esforço que fiz foi também para buscar fazer as reflexões da forma com Wittgenstein busca fazer nesse livro que usamos como referência. O resultado é um texto bem modesto, mas que terminei simpatizando com ele. Sendo assim, compartilho-o aqui. Segue o texto.       

Ensaio sobre a seção 157 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein

“Há metafísica bastante em não pensar em nada.” [1]
         (Alberto Caeiro)       
           
            Quando Wittgenstein afirma que o aprendizado da leitura em verdade se trata de uma mudança no comportamento do aprendiz[2], será que somos capazes de compreender, prima facie, o significado dessa assertiva?
            Para entender o conteúdo dessa afirmação, um caminho inicial possível é percorrermos o percurso trilhado por Wittgenstein na própria seção cento e cinqüenta e sete (157) das Philosophical Investigations.
            O texto tem início com a descrição de uma situação a ser imaginada pelo leitor. Trata-se de pensar em um cenário onde pessoas (ou outras criaturas) são treinadas como “maquinas de leitura” [3]. Nesse contexto é possível distinguir aqueles capazes de ler e aqueles que ainda não desenvolveram a aptidão. Se tomarmos um aprendiz, que ainda não foi submetido ao treinamento, poderemos perceber que, ao mostrar a ele palavras escritas ele poderá pronunciar sons e ocasionalmente, de forma “acidental”, pronunciará a palavra correta. Estará ele lendo nesse momento? O professor poderá afirmar que não. Por outro lado, após uma série de acertos consecutivos do aprendiz, o tutor poderá então declarar que o pupilo lê. A questão que Wittgenstein nos coloca é: em que momento o aprendiz começou a ler? Teria sido na primeira palavra que pronunciou corretamente? Ou apenas depois de uma seqüência de acertos?
            Nesse momento, o próprio Wittgenstein afirma não ter sentido formular essa pergunta. O ponto é que não se estabeleceu aqui um critério preciso para determinar o momento que marca a separação entre ler e não ler. Dessa maneira parece que a operacionalização própria dessa distinção é marcada por uma fluidez desse instante. Ou seja, a distinção entre ler e não ler parece ser pouco precisa quase que de forma proposital e isso parece ser necessário, ou melhor, a definição precisa do momento parece ser desnecessária no contexto formulado. Dessa maneira, a pergunta perde o sentido, a menos que se formule um critério para tornar possível respondê-la.
            Essa falta de critério apontada não deve ser vista como um problema. Em verdade, diante da presente situação, a indeterminação desse momento parece mesmo ser útil ao próprio processo de aprendizado da leitura, ou ainda parece fazer parte do uso que essa categoria tem na linguagem.
            Se prosseguirmos na leitura do texto, veremos que Wittgenstein propõe mais duas possibilidades de entendimento da palavra “ler” para que faça sentido perguntar sobre “a primeira palavra efetivamente lida”.
            A primeira maneira proposta é usarmos a palavra “ler” para designar uma experiência de transição ou “tradução” de certos sinais escritos para sons pronunciados. Aqui se trata de nos ater ao elemento subjetivo do aprendiz para determinar a capacidade ou não de leitura. Sendo assim a primeira palavra lida seria aquela onde o aprendiz teria tido efetivamente a “sensação de estar lendo”. Nesse caso seria possível apontar essa palavra onde a sensação se manifestou primeiro, mas com base num julgamento privado do próprio aprendiz.
            A segunda maneira proposta nos convida a supor um mecanismo, uma maquina de leitura, que converteria sinais em sons de forma mecânica[4]. Nessa hipótese a maquina iniciaria o processo de leitura apenas depois de ser fisicamente preparada para tal. A máquina precisaria ser conectada e ligada para conseguir iniciar a leitura. Dessa forma seria igualmente possível determinar a primeira palavra lida. Aqui, para determinarmos isso não se trata de recorrer a um elemento subjetivo da máquina, mas a características, de certa maneira, necessárias ao funcionamento da máquina. De toda forma, nessa situação, poderíamos então responder qual a primeira palavra lida, através de uma observação objetiva do funcionamento do aparelho de leitura.
            Até esse ponto, essas duas hipóteses apresentadas por Wittgenstein representam uma importante distinção entre uma concepção subjetiva e uma concepção mecânica do processo de leitura.
            Na primeira hipótese a ciência precisa do momento em que o aprendiz se tornou capaz de ler, seria privativa dele. Para qualquer outro, a pergunta “qual a primeira palavra que o aprendiz leu?” continua sem sentido, se não recorrerem diretamente ao aprendiz para respondê-la. Já na segunda proposição o que vemos é uma concepção absolutamente mecânica do processo de leitura. Por mais que possamos objetivamente responder a pergunta sobre qual a primeira palavra lida, nesse caso é muito difícil aceitarmos que essa concepção mecânica nos seja útil. O próprio Wittgenstein interrompe essa linha de raciocínio e retoma seu pensamento fazendo referência a “máquina de leitura viva” [5].
            O que ocorre aqui é que Wittgenstein busca se afastar de uma concepção mecânica do processo de leitura, em verdade poderíamos mesmo ampliar essa idéia não só para a leitura, mas para a linguagem em si. O homem não é uma maquina, e não pode ser tratado como um mecanismo, sua mente não é operada como máquina e ainda que fosse esse mecanismo não teria o condão de explicar o funcionamento da linguagem. Wittgenstein entende que ler é uma maneira de reagir a sinais escritos de determinadas maneiras. Essa idéia deve ser então vista enquanto um comportamento humano e como tal independe de um mecanismo mental que o oriente. Tanto a leitura quanto a linguagem em si são tratados por Wittgenstein dessa maneira.
            Para entender essa afirmação, podemos tomar outros exemplos que não a palavra “ler”. Pensemos então na palavra “vermelho”  [6]. Como aprendemos a usar essa palavra de maneira correta? Wittgenstein afirma que o uso de “vermelho” de forma adequada nada tem a ver com um processo mental que permita identificar a palavra com a cor correta no cotidiano. Em verdade, não é que os processos mentais não existam, eles apenas não são necessários para explicar como se dá o uso cotidiano dessa palavra (ou da linguagem em geral). De fato, os processos mentais não só não explicam como dificultam o entendimento de como se dá a identificação da palavra “vermelho” com a cor correta.
            Wittgenstein dissolve essa questão levando o desenvolvimento da idéia de processos mentais às ultimas conseqüências. Ele postula então a existência de imagens mentais de cores; de forma que ao mencionar a palavra “vermelho” uma pequena mancha vermelha saltaria à mente do interlocutor permitindo-o assim identificar a palavra pronunciada com a realidade. Nesse caso a pergunta que surge é: como esse interlocutor conseguiria identificar a palavra com a mancha mental da cor correta? É essa pergunta que evidencia tudo. A idéia do processo mental apenas transfere o problema. A mesma dificuldade que existiria de ligar a palavra à cor no mundo fenomênico se mantém quando postulamos a idéia da mancha mental. Nesse caso apenas tiramos o problema do mundo físico e o colocamos na mente.
            Podemos usar ainda outro exemplo para falar da linguagem enquanto comportamento. Pensemos na palavra “dor” [7]. Aqui a pergunta é: como uma palavra pode se referir a uma sensação? Ao nos referirmos a uma cor como o vermelho, temos ao menos um elemento externo que é compartilhado entre os interlocutores[8], mas uma sensação, como a dor parece algo estritamente privado. Uma hipótese sugerida pode ser a de associar a palavra “dor” com a reação primitiva de dor. Não se trata de afirmar que a palavra dor signifique “gritar”. Muito diferente disso, a palavra dor em verdade substitui o grito. A palavra “dor” é assim um novo comportamento de dor.
            Veja que isso não reduz a linguagem à mera significante de comportamentos. Ela é, em verdade, um comportamento por si. Ao tentarmos explicar essas questões nos socorrendo de processos mentais, imagens mentais ou logaritmos da mente, conseguimos freqüentemente apenas tornar a questão ininteligível. Todos esses entes mentais se existem, não são capazes de explicar a problemática do uso da linguagem. A verdade é que ao nos utilizarmos da linguagem no cotidiano não nos ocupamos de formular mentalmente suas regras de uso. Tanto é assim que quando somos indagados a cerca dessas regras é comum que não consigamos explicitá-las ou que enfrentemos significativa dificuldade em formulá-las.[9]
            É preciso que se diga também que não se trata de afirmar que a linguagem não possa fazer referência a processos mentais. Ela o faz a todo tempo. Somos capazes de nos referir à idéia de “mancha mental”, ou a imaginação em geral. Entretanto, esses processos parecem não ter estatuto normativo na produção do sentido da linguagem. A linguagem não é assim produto de um maquinário mental. Se fossemos pensar em termos da separação corpo alma (ou corpo e mente), creio que a linguagem não poderia ser vista como uma produção da alma manifesta no mundo físico. Entendo que a linguagem esteja muito mais relacionada a fenômenos do corpo, no âmbito do comportamento. As eventuais conexões entre corpo e alma ainda são para nós um espectro indeterminado e não acredito podermos tentar resolver esse problema filosófico por meio do funcionamento da linguagem. Ao tentar fazer isso não só não respondemos a questão como ainda dificultamos a compreensão da linguagem em si.
            Acredito que a linguagem possa ser entendida então pelo seu uso, e o aprendizado da linguagem consiste basicamente em aprender a usar a linguagem. Se voltarmos agora para a questão da leitura e do aprendiz, acredito podermos entender o que Wittgenstein quis fazer nessa seção cento e cinqüenta e sete (157) das Philosophical Investigations.
            Trata-se aqui de distanciar a noção do momento impreciso em que o aprendiz começou a ler de um mecanismo mental. A idéia de “maquina de leitura” nos serve para perceber o quão diferente é um instrumento mecânico do funcionamento da palavra “ler” no seu uso na linguagem.
            Ao tratar então a leitura como comportamento Wittgenstein consegue oferecer uma explicação para o próprio funcionamento dessa palavra na linguagem, e mesmo da linguagem em si. Ele “dissolve” então um aparente problema filosófico e aponta para um caminho muito mais simples onde alguns conceitos eventualmente possuem um grau de indeterminação e é isso que permite seu uso e seu sentido na linguagem.
            A pergunta então “qual a primeira palavra que o aprendiz leu?” não faz sentido e, para dotá-la de sentido, os critérios que precisariam ser estabelecidos poderiam macular o próprio uso do termo na linguagem, descaracterizando-o. A linguagem admite o uso de termos dotados de certa imprecisão, e seu uso é viabilizado precisamente por esse grau de inexatidão. Para entender esse fenômeno não precisamos recorres a problemas filosóficos muito mais complexos como ligação entre corpo e alma, nem a entidades que habitem as profundezas da mente. Nesse caso nos basta observar a linguagem em seu próprio uso, em sua própria manifestação enquanto comportamento humano.           

Ivan de Sampaio 

[1] PESSOA, Fernando. Poesia Alberto Caeiro. São Paulo/SP, Companhia das Letras. 1ª Ed. 2001. P. 31.  
[2] “The change when the pupil began to read was a change in his behavior” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63  
[3]“reading-machines”
[4]perhaps as a pianola does” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63
[5]living reading-machine” in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 63
[6] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. The Blue Book, New York. Harper &Row published. 1rd ed. 1965. P. 03/04
[7] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell Ltd. 3rd ed. 1986. P. 89
[8] Aqui, ainda que levantássemos a suspeita de que “o vermelho que ele vê não é o mesmo que eu vejo” isso não romperia com o raciocínio. Independentemente disso, há um vermelho no mundo físico que foi, como que por consenso, denominado dessa forma. Independentemente de como cada um o enxerga, ambos os interlocutores denominam o que vêem de “vermelho”.        
[9] Conforme desenvolvido in: WITTGENSTEIN, Ludwig. The Blue Book, New York. Harper &Row published. 1rd ed. 1965. P. 25

sábado, 13 de agosto de 2011

Garçom Tira a Conta da Mesa...


Acabei de perceber que essa semana foi o dia 11 de agosto, dia do advogado. Como não tinha escrito nada sobre a data, vou publicar então esse pequeno texto que escrevi ainda no primeiro ano da faculdade de direito, para o jornal do C.A na época, está um pouco mal escrito... Mas não é de todo ruim. Hoje, teria escrito de forma bastante diferente. Quanto ao conteúdo, mantenho minha opinião daquela época. Segue o texto. 

Garçom Tira a Conta da Mesa...

“Mesmo que eu não possa mudar seu comportamento, espero ao menos causar sua inquietação...” (Fiódor Dostoievski).
           
            Por meio deste artigo me proponho a criticar uma tradição dos estudantes de direito. Sei que essa crítica tem todos os atributos para não ser aceita num meio onde a tradição ocupa lugar de tamanho destaque, mesmo assim não posso deixar de mostrar aqui o que acredito que o “pindura” de fato representa e o que os estudantes de Direito perpetuam ao praticá-lo.
            Vale aqui relembrar a origem da tradição do “pindura”. O “pindura” teve início quando a Universidade do Largo São Francisco era a única a lecionar o curso de Direito em São Paulo. Nessa época o “pindura” era muito mais uma homenagem ao restaurante do que uma mera oportunidade para “comer de graça” ou uma “brincadeira” universitária. Os estudantes de direito tinham a refeição gratuita em troca de um pomposo discurso de agradecimento e elogio ao estabelecimento. Com o passar do tempo essa tradição foi distorcida e os alunos de direito passaram a impor esse costume mesmo aos restaurantes que não se dispunham a acatá-lo. Hoje, o “pindura” se tornou uma mera oportunidade para os estudantes se banquetearem de graça nos restaurantes sem temer nem uma sanção.
            Um fundamento crucial que permite aos estudantes de direito realizar o “pindura” é o texto do caput do art. 176 do código penal que prevê o seguinte: “Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena – Detenção de 15 dias a 2 (dois) meses, ou multa.” Com base neste artigo os estudantes descaracterizam o crime de fraude afirmando  possuir recursos para pagar e somente não o fazem em nome da tradição. Dessa forma, fica claro que os estudantes apenas se aproveitam de uma lacuna no ordenamento e através desta impõem sua vontade ao estabelecimento. O texto do artigo 176 leva ainda a uma pergunta: Que conduta o código penal condena com esse artigo? Segundo o texto do próprio artigo a conduta ilícita não esta no ato de não pagar pelo serviço, mas sim no fato de não ter como pagar, logo o crime, segundo o artigo 176, não está fundamentalmente na má fé daquele que utilizou o serviço, o crime seria agir de ma fé e ser pobre. O advogado, por poder pagar e não querer não pode ser imputado, não obstante, se alguém de fato não pode pagar pelo serviço, esse sim cumpre pena de 15 dias a dois meses? Onde se encontram a igualdade e a proporcionalidade nesse caso? Veja, não defendo que os estudantes de direito comecem a ser imputados criminalmente pelo “pindura”. Pessoalmente não acredito na criminalização de nenhuma conduta. Mas essa análise legal pode servir para evidenciar o real significado dessa estranha tradição.     
            O “pindura” representa mesmo uma grande imposição de poder. A tradição só conseguiu se perpetuar por todos esses anos por que o próprio sistema que aplica sanções no Brasil é composto por pessoas absolutamente condescendentes com tal pratica por também terem-na realizado durante a faculdade. Logo, essa forte imposição de poder se evidencia quando o gerente do restaurante lesado decide levar o caso para ser resolvido pelas vias legais e não consegue imputar os estudantes, pois, ou o delegado será complacente com os infratores, ou mesmo que o chefe de polícia decida aceitar a queixa e levar o processo adiante o juiz não aceitará a denuncia. O estudante, com isso, se sente legitimado a afirmar: “Está vendo, é para isso que eu estudo; para fazer a balança da justiça pender a meu favor e trazer a espada da sanção para minha mão”. Diante dessa situação o gerente ou dono do restaurante é forçado a se resignar, com o sentimento de impotência por perceber que tem contra si, a polícia, o poder judiciário e até mesmo uma autarquia do Estado, a OAB.
            Além de todas as questões referidas, ainda existe um ponto de relevância na questão; a imagem do advogado. Diante de todas essas questões, o “pindura” apenas corrobora com a reputação ruim que o advogado já tem em nossa sociedade. Já são muito comuns, as piadas a respeito dos advogados. Também, de certa forma, já se construiu no imaginário comum a figura do advogado “esperto” que manipula o ordenamento jurídico de acordo com a situação que o favorece. Será que é isso que os estudantes de direito querem, fortalecer ainda mais essa imagem negativa apenas para manter uma tradição como o “pindura”?
            O “pindura” é isso, uma tradição classista que apenas legitima uma imposição de poder através de uma falha no ordenamento jurídico. Isso com o pretexto de ser uma brincadeira; aliás, esse caráter lúdico é outro aspecto do “pindura” que auxilia na sua manutenção, pois a piada consegue acobertar todo real significado da tradição. Cabe aqui apenas fazer uma pequena defesa dos estudantes quanto ao seguinte. Existem, três possibilidades que levam os estudantes a praticar o “pindura”: primeiro, a ingenuidade, o estudante pode levar a tradição, de fato, apenas na brincadeira e não ter pensado no que ela realmente representa. Segundo, o futuro bacharel pode ter consciência do que a tradição do “pindura” significa e concorda com esse significado. Por último, o estudante pode ainda saber de todo o significado do “pindura” e praticá-lo apenas por que afinal “todo mundo faz” e ele simplesmente ignora o que a tradição representa. Quero informá-los que, se os senhores leitores se encontravam na primeira categoria, de ingenuidade, depois desse artigo já não podem usar desse argumento para se defender.
            No curso de Direito, logo no primeiro semestre, já aprendemos que o direito atua no campo do “dever ser”. Será que é isso então que deve ser? Estuda-se direito para que a justiça seja favorável a nós? Para que a espada da sanção de fato esteja em nossas mãos? Para de fato permitir que uma classe profissional detenha o monopólio da justiça?
            As faculdades de direito em São Paulo tem a tradição como quase parte do seu currículo. Parece ate que pedagogicamente se busca forma o tipo de profissional que busca o privilégio ao invés de ideais de equidade. É salutar lembrar se a tradição serve para sustentar práticas de privilégios classistas como o “pindura”, ela não deve ser exaltada, mas sim abolida. A tradição não é um fim em si. É ai que talvez caiba ao direito lutar em favor do que deve ser.   

Ivan de Sampaio 

VII Colóquio Internacional Michel Foucault – PUC/SP. O Mesmo e o Outro. 50 anos de História da Loucura (1961-2011).

Faço essa pequena postagem apenas para divulgar uma atividade, da qual faço parte da comissão organizadora, e que acredito ser um acontecimento, como diria Foucault.

Entre os dias 24 e 27 de outubro acontecerá na PUC/SP o VII Colóquio Internacional Michel Foucault. O tema dessa edição será O Mesmo e o Outro. 50 Anos de História da Loucura.




Mas, para mim, 1961 continua e continuará sendo o ano em que se descobriu um verdadeiro grande filósofo. Eu já conhecia pelo menos dois que haviam sido meus colegas de estudos, Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Também não eram  indulgentes com relação a Foucault. Um dia, contudo, os três foram vistos juntos.  Era para apoiar, contra a morte, uma aventura sem fronteiras. (Georges Canguilhem)

            Tendo por mote central a comemoração do cinquentenário de História da loucura na idade clássica, o Departamento de Filosofia e o Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo propõem a realização do VII Colóquio Internacional Michel Foucault. O evento pretende dar continuidade a uma seqüência regular de Colóquios, realizados em várias instituições (USP, UERJ, UNICAMP, UFRGN, UFRJ) e fazer da “celebração” desta obra já cinquentenária um instrumento de interrogação e de abertura às questões do presente.
            A programação do evento está estruturada em conferências e comunicações. As conferências serão proferidas por professores convidados estrangeiros (Ècole Normale Superieure de Paris, Université de Bordeaux, Universidad Complutense de Madrid e Universidade de Lisboa). As comunicações serão organizadas em mesas redondas com professores brasileiros de várias universidades do país, vinculados a diferentes áreas do conhecimento (Filosofia, História, Educação, Ciências Sociais, Psicologia, Direito), configurando assim a natureza interdisciplinar do evento.

Para inscrições e mais informações consultem o site do Colóquio aqui. 


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Conhecimento do Espírito Objetivo: um breve ensaio sobre a Introdução à Filosofia do Direito de Hegel

Obs: Esse texto é mais um trabalho acadêmico. Foi feito para um curso que fiz na faculdade de filosofia da PUC/SP como disciplina optativa livre da minha graduação em direito, ministrado brilhantemente pelo Professor Dr. Cassiano Terra Rodrigues do departamento de filosofia. Trata-se apenas de uma leitura inicial do Hegel. Consegui, ao final, ousar um pouco e fazer uma breve crítica a concepção de Direito enquanto técnica. Também formulei, em linhas bastante gerais, uma justificativa hegeliana para o direito penal. Pessoalmente, sou um defensor do abolicionismo penal, mas achei interessante a dedução possível das funções penais dentro do sistema de Hegel. Segue o texto.              
Obs 02: Aproveito para recomendar a leitura da coluna de cinema do Prof. Cassiano no Correio da Cidadania.               




O Conhecimento do Espírito Objetivo  
Um breve ensaio sobre a Introdução à Filosofia do Direito de Hegel

            Em uma primeira aproximação da obra hegeliana, acredito que já seja possível tomarmos como lição que o conhecimento filosófico só se constitui verdadeiramente na forma do sistema. É precisamente a demonstração da necessidade das partes perante o todo que podemos ver ser construído o próprio conhecimento filosófico. Dessa maneira, o objetivo que tenho aqui nesse trabalho pode ser dividido em apenas dois momentos. Primeiro quero observar como a obra Introdução à Filosofia do Direito[1] pode ser vista dentro do sistema filosófico formulado por Hegel. Em segundo lugar, penso ser possível formular uma pequena linha crítica à forma que tratamos o Direito hoje com base na leitura sistêmica dessa Introdução.
            Para entender o objetivo desses parágrafos de introdução (§ 01-33) precisamos retomar uma distinção feita por Hegel no §1 da Ciência da Lógica[2]. Nesse parágrafo referido é feita a diferenciação entre a filosofia e a ciência. “A filosofia não tem a vantagem, de que gozam as outras ciências de poder pressupor seus objetos como imediatamente dados pela representação.” [3] Tendo em vista então que o que Hegel pretende, em sua Filosofia do Direito, é fazer “ciência filosófica” ele não pode, de antemão, pressupor o conteúdo objeto de estudo.
            Dessa maneira, a Introdução à Filosofia do Direito pretende reconstruir o processo de formação do conteúdo que será objeto da “ciência filosófica” do direito. Como ciência filosófica “ela tem de dirigir o seu olhar ao próprio desenvolvimento imanente da coisa mesma.” [4] 
            É preciso ressaltar por sua vez que “a ciência do direito é uma parte da filosofia” [5]. Enquanto ciência ela tem um ponto de partida dado, ou seja, pressupõe seu objeto. Dessa forma “a tarefa da Introdução é [também] situar esse ponto de partida [a ciência do direito] no todo do saber filosófico.” [6]   
            Em decorrência dessas pretensões é que a Introdução não pode ainda ser vista como “ciência filosófica do direito”, mas apenas como exterior e necessariamente anterior a ela. O conceito ainda precisa ser demonstrado aqui em sua concretude, em sua articulação que levou ao “ser ai” do objeto.
            O objeto da filosofia do direito é então o Direito; mas o Direito enquanto “espírito objetivo”, ou seja, colocado entre o “espírito subjetivo” e o “espírito absoluto”. Dessa maneira o Direito, ou melhor, a filosofia do direito no sistema hegeliano “não trata da totalidade do mundo cultural, por que o reino do direito é apenas uma parte do reino do Espírito.” [7] Para Hegel o “espírito absoluto” poderia ser, de certa forma, atingido apenas pela Arte, que o apresenta[8], pela Religião que o representa e pela Filosofia que o conceitua.    
            Afirmar que o Direito é visto como “espírito objetivo” é então colocá-lo como um ato de estranhamento do espírito, que sai de sua pura subjetividade e se abstrai no mundo. Sua emanação sai, em verdade, da vontade enquanto “espírito subjetivo”. Trata-se aqui então de uma forma de “retomar o princípio da objetivação do espírito subjetivo” [9].
            O ponto de partida então do Direito é “a vontade que é livre, assim que a liberdade constitui sua substância e sua destinação” [10]. A liberdade é então tratada por Hegel como um atributo da vontade, atributo esse que se efetiva, inclusive, por meio da vontade. Por isso que podemos afirmar também que “o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada.” [11].
            A vontade enquanto “espírito subjetivo” pode ser vista como uma unidade de dois aspectos distintos. Seria o que Hegel chama de “aspecto universal” da vontade e a vontade particular, ou aspecto individual. Dessa maneira, “o conceito hegeliano de vontade quer mostrar que a vontade tem duplo caráter, constitutivo em uma polaridade fundamental entre elementos particulares e universais.” [12]
            Essa vontade é a vontade livre do sujeito pensante. Nesse sentido cabe retomar a Ciência da Lógica na idéia de que o pensamento é o único reino da liberdade. A vontade é também uma forma de pensamento, um modo do pensar que se expressa na realidade. É através da vontade então que o indivíduo determina suas ações de acordo com sua razão. A esfera do Direito, produto do estranhamento do espírito subjetivo, é então objetivada exatamente por essa vontade livre do indivíduo.[13] 
            Em síntese poderíamos então afirmar que “o espírito objetivo nada mais é do que a apresentação desse movimento do conceito de direito, pelo qual ele, através da sua determinação completa, se efetiva enquanto idéia de liberdade.” [14] O direito emerge então enquanto objetividade proveniente da parte conclusiva da filosofia do “espírito subjetivo”.
            Quando observamos então o objeto com esse rigor do pensamento hegeliano, não podemos deixar escapar também a racionalidade que parece habitar o próprio objeto. Ao tratarmos o espírito objetivo, aqui, enquanto abstração produto desse ato de estranhamento do espírito subjetivo referimo-nos ao Direito. Se formos, por outro lado, nos ater à concretude do espírito objetivo, veremos que a sua manifestação se dá no Estado, vez que é o espírito objetivo visto em sua manifestação histórica e como tal concreta. Falei isso apenas para destacar que, o objeto, como concreto ou abstrato, deve ser tratado necessariamente como racional, pois a sua manifestação histórica, ou seu ato de estranhamento produtivo, não se dão por mera casualidade. É assim tarefa que também compete à filosofia, conseguir entender que a própria realidade é racional, vez que é constituída por meio de uma ordem racional a ser evidenciada através do próprio processo de reflexão do conceito e sua efetividade concreta.
            Esse princípio que move o conceito é o que Hegel chama de “método dialético”. Ele não só dissolve a “consciência natural” [15], mas também produz, “nos permite aprender o conteúdo e o resultado” [16]. É possível ver que o próprio processo de desintegração da consciência natural por meio do “saber fenomenal” [17] já constitui um caminho necessário rumo ao saber verdadeiro. Nesse percurso é preciso perceber que o método dialético não se constitui enquanto a atribuição externa de uma racionalidade para os objetos. “O objeto é por si mesmo racional” [18]; o progredir é imanente e cada etapa necessária do caminhar é gestada e superada. Nesse percurso a tarefa da “ciência filosófica” é “somente trazer à consciência esse trabalho próprio da razão da coisa.” [19]
            Com o espírito objetivado, o que aparece se mostra assim em decorrência de uma lógica imanente ao próprio objeto. Trata-se de uma razão constitutiva do mundo conforme ele se apresenta. Nesse cenário, resta por fim rompida a separação entre aparência e essência. O objeto aparece em decorrência da razão própria de sua essência.      
            Depois de ter feito essa caracterização inicial do que julgo serem os principais pontos a mencionar da Introdução à Filosofia do Direito acredito poder ousar esboçar aqui uma situação que creio poder ilustrar um pouco a passagem do “espírito subjetivo” para o “espírito objetivo” enquanto a efetivação de uma vontade universal capaz de produzir uma ordem jurídica.
            Pensamos na vontade particular. Como Hegel estrutura seu raciocínio, creio podermos afirmar que o método dialético dissolve as particularizações do universal justamente para produção, no caso, de uma ordem jurídica racional que é o Direito, espírito objetivo. Na hipótese então de um indivíduo conseguir efetivar uma vontade particular sua, antagônica a vontade universal[20], creio que o Direito, comumente, denomina tal conduta de delito. Ocorre que a efetivação dessa vontade particular, inaugura, pela sua própria objetivação, outra ordem objetiva, contrária a ordem objetiva universal.
            Diante dessa situação, a ordem jurídica proveniente da vontade universal deve, necessariamente, prever sanções para coibir a proliferação dessas ordens particulares. Sendo assim, toda conduta que emerge como negação do Direito (do espírito objetivo) deve ser negada por uma sanção do próprio direito. Dessa forma se assegura a manutenção da objetivação do universal ao negar tudo àquilo que nega a ordem do espírito objetivo. Está aqui esboçado o fundamento para um Direito sancionador enquanto negação da negação da ordem segundo o pensamento de Hegel.                          
              Agora que já fiz a caracterização que pretendia da Introdução a Filosofia do Direito e até ousei ir um pouco adiante e tentar formular um desdobramento possível das idéias do texto. Dedico esses parágrafos finais para esboçar uma pequena crítica à concepção contemporânea de direito enquanto técnica com base nas idéias do Hegel de consciência natural e alienação.
            Tratarei aqui a palavra técnica de forma bastante simples, apenas enquanto um procedimento, ou o conjunto de procedimentos, que têm como objetivo obter um determinado resultado. Se a técnica é um conjunto de meios, já vemos que, com a própria constituição de um saber técnico, se procede uma separação, uma cisão entre meios e fins. 
            É precisamente essa separação que permite ao “operador” da técnica dominar meios para os quais desconheça os fins. Nesse sentido nos aproximamos da alienação em sentido marxista, a alienação no âmbito da produção (aqui não quero me aprofundar por que o que interessa, por hora, não é o sentido marxista do termo).
            No momento em que o operador domina a técnica (os meios) e desconhece seus fins (ou apenas não os conhece da mesma maneira que domina o saber técnico) começa a surgir uma idéia de aprimoramento técnico, de desenvolvimento e de produção eficiente de fins que já são dados. O operador da técnica, por não precisar assim conhecer as suas finalidades, finda por concentrar suas habilidades no aprimoramento dos meios e, cada vez mais, aceita os fins como dados. Ou seja, essa cisão entre meios e fins termina produzindo uma “naturalização” dessas finalidades.
             É por isso que o operador da técnica fica também alienado no âmbito da “consciência natural” [21] vez que passa a tratar como inerente (ou natural) algo que é concreto, algo que foi constituído historicamente.
            Quando nos referimos ao direito, tratá-lo como uma técnica, como um instrumento, é tolhe precisamente a capacidade reflexiva “em si e para si” do espírito objetivo. Nas palavras de Hegel, ao instrumentalizarmos, por exemplo, a ciência ocorre precisamente a mesma coisa: “por um lado, a ciência pode ser empregada como entendimento servil para fins finitos e meios casuais e assim não adquire sua determinação a partir de si mesma” [22].
            No mais, a própria idéia de alienação, aqui, mantém os operadores da técnica num estado de erro. Podemos lembrar a crítica que Hegel faz na Introdução aos cursos de estética à instrumentalização do conhecimento: “o meio deve ser adequado à dignidade da finalidade, sendo que a aparência e a ilusão não podem gerar o verdadeiro, mas somente o verdadeiro pode gerar o verdadeiro.” [23] É mais uma problemática de tratar o Direito enquanto mera técnica o fato de se utilizar dele para criar uma situação de erro, onde o que deveria ser o espírito objetivo é colocado a serviço do equívoco. Dessa maneira o produtor do falso deve ser igualmente falso. 
            Por fim, reduzir o direito a uma técnica de procedimentos rompe com o próprio método dialético. Uma vez técnica, o objeto não pode mais ser visto como “em si e para si” e dessa forma a sua racionalidade passa a ser atribuída de maneira externa. Ou seja, as finalidades tratadas como naturais são precisamente a atribuição de uma racionalidade exterior ao objeto, trata-se da imposição de uma ilusão racional que substitui a real racionalidade imanente ao objeto. O objeto deixa assim de ser real.
            Dessa forma, ao tratar o direito enquanto técnica não só o operador jurídico se vê alienado na consciência natural, mas o próprio direito se aliena no âmbito de uma racionalidade exterior imposta.  

Ivan de Sampaio


[1] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado no Traçado Fundamental. Introdução à Filosofia do Direito (§1-33). In: Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 10. Tradução de Marcos Lutz Muller. UNICAMP. Campinas/SP. 2005.      
[2] HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio Volume I Ciência da Lógica. Edições Loyola. São Paulo/SP. 1995.  
[3] Ibidem. P. 39
[4] Cf. nota 01. §2 P.40. 
[5] Cf. nota 01. §2 P.40. 
[6] Cf. nota 01. Apresentação. P. 06 
[7] MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social. Editora Paz e Terra. 5ª edição. São Paulo/SP. 2004. P. 158   
[8] HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética Vol. I. EDUSP. 2ª edição. São Paulo/SP. 2001. Introdução.   
[9] Cf. nota 01. Apresentação. P.07.
[10] Ibidem. §4. P. 47.
[11] Ibidem. 
[12]  Cf. nota 07. P. 165.
[13] Cf. nota 07. P. 163.
[14] Cf. nota 01. Apresentação. P. 08 
[15] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 66   
[16] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[17] Cf. nota 15.
[18] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[19] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[20] Não estou aqui tratando vontade universal como sinônimo de vontade geral. Trata-se do sentido hegeliano do termo que definitivamente não pode ser tratado como generalidade composta por um acordo contratual de particularidades como em Rousseau.  
[21] A consciência natural é apenas “conceito do saber, ou saber não real”. Seria de certa forma o saber no âmbito do senso comum. Uma forma de tomar enquanto absolutas verdades circunstanciais. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 66       
[22] Cf. nota 08. P. 32.
[23] Cf. nota 08. P. 30.